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Marcelo Marcelino

Membro Auditoria Cidadã da Dívida Pública (ACD) nacional, sociólogo, economista e cientista político, pesquisador do Núcleo de Estudos Paranaenses – análise sociológica das famílias históricas da classe dominante do Brasil e membro do Partido da Causa Operária – Curitiba.

Coluna

Raízes do poder no Brasil e formas de organização da burguesia

"Marx reconhecia o poder geracional da classe dominante e adicionava aos aspectos que envolvem a economia política na sua crítica histórica"

Compreendendo que as famílias hereditárias controlam a terra e as instituições administrativas do Estado, o conceito de patrimonialismo não pode ser simplesmente descartado, já que praticamente toda a riqueza da classe dominante era proveniente das receitas acumuladas a partir dos ganhos da exploração da terra controlada pelo Estado e do orçamento advindos do recolhimento de impostos também via aparelho estatal administrativo dominado por frações da classe burguesas distintas, e que sempre pertenciam a grupos privilegiados de poder. Havíamos apontado em abordagens anteriores que a classe dominante desde o período feudal-mercantilista era composta no sentido geral pela nobreza, a burguesia mercantil, financista e pelo clero que organizavam as estruturas hierárquicas sociais e políticas diante de acordos e disputas seculares.

 No Brasil colonial, a classe dominante, apesar de dividida em grupos que controlavam o aparelho político e o aparato militar e se estruturavam em torno da exploração da terra, as diferenças e os interesses eram disputados em torno de rearranjos de forças, onde em grande medida a organização do núcleo familiar aparecia como elemento importante de sociabilidade e estratégia política e econômica de dominação. A pilhagem colonial e a rapina das receitas administrativas provenientes do controle dos aparelhos de Estado sempre foram uma rotina permanente, assim como a exploração das terras através da escravidão secular. Ao mesmo tempo, não se trata do denominado “Estado corrupto”, mas sim da apropriação desse pela classe dominante e que também controla o “mercado” ou os setores privados mais poderosos. Jessé Souza (2017) critica com razão a posição daqueles que persistem em demonizar o Estado como sendo o responsável pelos males da corrupção e dos desvios de toda ordem e recursos. Afinal, o “mercado” como aparentemente distante e isento no processo de corrupção, atua sempre com o Estado numa simbiose de interesses diversos onde o setor público e os bens públicos são capturados pelos interesses do “mercado” onde o sistema capitalista monopolista de Estado promove toda a escalada de ampliação e reprodução do capital de grande monta e nunca sem a presença permanente do “Estado” e sem também a constante atuação dos agentes públicos agindo no sentido de viabilizar os investimentos, financiamentos e toda a política fiscal, monetária, cambial, tributária e legal em favor desse sistema a partir das múltiplas instituições pertencentes ao aparelho estatal.

 Desta maneira cabe a consideração de Souza (2017; p. 136):

 “A noção de patrimonialismo é falsa por duas razões: primeiro as elites que privatizam o público não estão apenas nem principalmente no Estado, e o real assalto ao Estado é feito por agentes que estão fora dele, principalmente no mercado. A elite que efetivamente rapina o trabalho coletivo da sociedade está fora do Estado e se materializa na elite do dinheiro, ou seja, do mercado, que abarca a parte do leão do saque”. 

A economia política brasileira passa por algumas fases de transformação desde o processo de implantação das capitanias e sesmarias do período colonial em transição para o imperial e mais tarde no século XX, em especial a partir da década de 1930, modificando o cenário político e o panorama econômico brasileiro. A entrada das empresas estrangeiras e o desenvolvimento dos aparelhos burocráticos em consonância com o projeto de industrialização, incluindo empresas estatais e privadas nacionais contribuíram para dinamizar a economia brasileira nessa fase de expansão do capitalismo embrionário no Brasil. Diante dessa complexidade, envolvendo as oligarquias rurais tradicionais, adaptando-se às mudanças na conjuntura política e nas estruturas econômicas ditadas pelo dirigismo estatal industrializante, novas perspectivas de pilhagem do Estado se ampliam, assim como o “mito” da corrupção toma uma forma ainda mais “sofisticada” em termos de retórica, numa engrenagem que combina discurso político e engenharia intelectual de verniz academicista. Ainda segundo Souza (2017; p. 136-137): 

“Na verdade, o Estado é privatizado em todo o lugar, e a noção de patrimonialismo apenas esconde mais esse fato fundamental, possibilitando uma dupla inviabilização: dos interesses privados que realmente dominam o Estado; e do rebaixamento geral dos brasileiros, que passam a tratar não apenas os estrangeiros, mas os interesses estrangeiros, como superiores e produto de uma moralidade superior. A atual destruição da Petrobrás – sob acusação de corrupção patrimonialista, como se as petroleiras estrangeiras que irão substituí-la também não o fossem e em grau seguramente muito maior – é um perfeito exemplo prático dos efeitos vira-latas dessa teoria”. 

As abordagens de Jessé Souza (2017) correspondem não apenas a uma crítica da teoria que envolve a sociologia política e a sociologia histórica brasileira clássica como também da própria economia política de conjunto, onde o sistema capitalista, apesar de não ser contestado na sua gênese por Jessé mostra a total conexão entre interesses do Estado capitalista e das corporações nacionais e estrangeiras capturadas pela classe dominante. Levando em consideração a crítica ao conceito de patrimonialismo que ele expõe de maneira geral, mas sem se debruçar com o devido rigor nesse momento procuramos ponderar alguns dos seus aspectos. Desta forma, cabe algumas incursões necessárias por mais ligeiras que se apresentem no sentido de instigar o debate acerca do tema relevante em uma perspectiva histórica e sociológica. Mesmo a princípio correta, a visão de Jessé em certo sentido ignora aspectos importantes destacados por Raimundo Faoro (2001) e cabe examinarmos alguns elementos para posterior análise de forma mais elaborada através do próprio conceito de patrimonialismo. De acordo com Sandroni (2005; p. 629) sobre o conceito de patrimonialismo: 

“Sistema de dominação política ou de autoridade tradicional em que a riqueza, os bens sociais, cargos e direitos são distribuídos como patrimônios pessoais de um chefe ou de um governante. Ultrapassa o âmbito das relações pessoais e familiares típicas do patriarcalismo, englobando até mesmo a estrutura de um Estado, um corpo de funcionários burocráticos, sem vínculos de parentesco com o soberano, administra, controla e usufrui do patrimônio público, que se apresenta como propriedade pessoal do governante. Um Estado de tipo patrimonialista não diferencia, portanto, a esfera pública da privada. Foram patrimonialistas os Estados burocráticos do antigo Oriente; no Ocidente, um exemplo típico foi o Estado português, cuja monarquia controlava todas as atividades econômicas por meio de um corpo organizado de funcionários e distribuía as vastas terras incorporadas às Coroas pelos descobrimentos marítimos”. 

Essa tradição patrimonialista foi herdada pelo Brasil com sua administração colonial baseada nas capitanias e na economia centrada na grande propriedade familiar de monocultura. Segundo alguns autores, uma sociedade capitalista nascida de uma tradição patrimonial tenderia a formas autoritárias de dominação política, ao contrário das formações capitalistas originárias do feudalismo descentralizador (Europa), que seriam mais adequadas ao desenvolvimento e manutenção da democracia representativa. A crítica de Jessé Souza no que diz respeito ao conceito e a abordagem teórica do patrimonialismo concebida em Faoro (2001) e Freyre (2006) colocam possibilidades de incursões teóricas múltiplas e multifacetadas tomando como base introdutória seu conceito mais genérico exposto na passagem acima. Se considerarmos o final da passagem citada corroboramos em certa medida com as críticas de Jessé Souza (2017) já que expõe aparentemente algumas diferenças entre as formações ibéricas; em particular do modelo na formação da construção do Estado português em comparação as formas medieval-mercantilistas na Inglaterra, França e Holanda, mas com problemas de generalizações que não conseguem explicar de maneira satisfatória a tipificação que desemboca numa melhor ou pior organização social e política.

 Mas, nesse sentido, a passagem seguinte procura contribuir com essa discussão incluindo alguns dos elementos que compõe a estrutura organizacional do patrimonialismo que são fundamentais na compreensão do fenômeno sociológico. 

Ainda segundo, Machado, Marcelino e Capraro (2015; p. 84): 

Nesse sentido, na visão de Raimundo Faoro, o patronato político no período do Império no Brasil se concentraria principalmente nas mãos dos grandes proprietários de terras. Esta passagem “… Os homens do interior, com os meios de domínio econômico e social que lhes dava a fazenda [ou seja, suas terras] teriam todas as condições de exercer o poder político, numa projeção nacional”, ilustra de forma exemplar esta concentração de poder. Isto ocorreria, segundo o autor, justamente pela necessidade política social que o Estado teria em delegar parte da administração local ou sua totalidade a esses proprietários, dando a estes completa autoridade sobre seus dependentes. A relação entre Estado e proprietários de terras, portanto, iria além da distribuição de empregos públicos visando apoio eleitoral dos mesmos, mas sim, funcionaria como um instrumento de controle em termos fiscais e militares do governo. Essa passagem incorpora outras categorias sociológicas que procuram analisar o patrimonialismo através de uma perspectiva que não apenas relaciona o controle do aparato burocrático estatal no sentido de viabilizar apenas os interesses dos privilegiados que controlam as instituições, mas também e principalmente pelas formas de organização entre os proprietários de terras e o Estado na distribuição de cargos e da própria garantia do poder nas mãos dos mais amplos e variados grupos e setores institucionais, inclusive na Guarda Nacional e no próprio setor militar, numa engrenagem que incorpora as famílias históricas. 

Esse processo é bem mais complexo do que as críticas levantadas por Jessé Souza. Diante dessa importante discussão cabe ressaltar uma passagem do próprio Faoro na obra “Os donos do poder”. De acordo com Faoro (2001; p. 823-824): 

“O domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando aparece o estado maior de comando do chefe, junto à casa real, que se estende sobre o largo território, subordinando muitas unidades políticas. Sem o quadro administrativo, a chefia dispersa assume caráter patriarcal, identificável o mando dos fazendeiros, do senhor de engenho e nos coronéis. Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído pelo estamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre o setor público e o privado, que, com o aperfeiçoamento da estrutura, se extrema em competências fixas, com divisão de poderes, separando-se o setor fiscal do setor pessoal. O caminho burocrático do estamento, em passos estremeados de compromissos e transações, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável às mudanças. O patrimonialismo pessoal se converte em patrimonialismo estatal, que adota o mercantilismo como a técnica de operação da economia. Daí se arma o capitalismo político, ou capitalismo politicamente orientado, não calculável nas suas operações, em terminologia adotada no curso deste trabalho. A compatibilidade do moderno capitalismo com esse quadro tradicional, equivocadamente identificado ao pré-capitalismo, é uma das chaves de compreensão do fenômeno histórico português-brasileiro, ao longo de muitos séculos de assédio do núcleo ativo e expansivo da economia mundial, centrado em mercados condutores, numa pressão de fora para dentro. Ao contrário, o mundo feudal, fechado por essência, não resiste ao impacto, quebrando-se internamente, para se satelitizar, desfigurado, ao sistema solar do moderno capitalismo. Capaz de comerciar, exportando e importando, ele adquire feição especulativa mesmo nas suas expressões nominalmente industriais, forçando a centralização do comando econômico num quadro dirigente. Enquanto o sistema feudal separa-se do capitalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia”. 

Essa abordagem de Faoro repleta de intersecções coloca o conceito ou mesmo a abordagem teórica do patrimonialismo numa perspectiva crítica onde ocorrem conjunções de fatores e de estruturas sociais, econômicas e políticas combinadas, onde o Estado articula uma dinâmica que apesar de extrapolá-lo confere a esse a capacidade de mediar interlocuções não apenas na fase feudal-mercantil como também diante dos imperativos capitalistas externas e internas. Cabe observar uma importante consideração envolvendo o conceito de estamento e classe social que contribui para o debate. 

Desta maneira, segundo Hirano (2002; p. 114): 

“Há uma conexão, porém não necessária, entre capitalismo comercial e classes proprietárias e a sociedade estamental. Eis a afirmação de Weber: “Os estamentos, devido ao seu centro de gravidade, se formam frequentemente por classes de propriedade”. Concluímos daí que a classe proprietária é a que conserva em maior grau as características da sociedade estamental, tais como a marca de convencional, “ordenada pelas regras de estilo de vida, elaborando desse modo, as condições de consumo economicamente irracionais, impedindo a constituição do mercado livre pela apropriação monopolística e pela eliminação da livre disposição sobre a própria capacidade aquisitiva”. Esta é, em parte, uma das características do capitalismo mercantilista ou monopolista (ver capítulo II, parte referente a Weber – onde discutimos estamento e organização econômica, patrimonialismo e a peculiaridade geral de sua administração)”. 

No caso brasileiro, a classe dominante utilizou-se de várias estratégias históricas de controle e dominação dos recursos dentro e fora dos aparelhos estatais, onde as famílias viabilizaram seu projeto de expansão, acumulação e reprodução dos “capitais” que garantiram seu poder por gerações até esse momento histórico na contemporaneidade. 

Ainda segundo Hirano (2002; p. 133): 

“Em suma, as classes sociais são categorias históricas e transitórias e são determinadas pela transição do feudalismo ao capitalismo moderno. O referencial básico é a produção social historicamente determinada, ou seja, o modo de produção capitalista moderno. Em sua fase de constituição, a oposição central é entre a burguesia e a nobreza (ou estamento), simbolizando aquela um momento de generalidade e refletindo, por conseguinte o interesse comum de toda a sociedade emergente, expressando assim “em termos ideais” a “forma do geral” – a burguesia apresenta “estas idéias como as únicas racionais e dotadas de vigência absoluta”.

 Notem que essa dicotomia entre estamento e classe social não representa necessariamente uma fórmula geral da sociedade colonial tradicional para a da burguesia do século XX, principalmente no caso brasileiro, onde a coexistência de culturas e práticas estamentais com as incipientes formas burguesas de organização social, política e econômica ocorreram na forma de simbioses entre, trabalho e política social e “mercado”, mas com a centralidade no Estado como alicerce de articulação e mediação. Mas, afinal, ao mesmo tempo, o discurso do Estado como centro gravitacional e “culpa de todos os males” pode corresponder ao conceito de patrimonialismo e sobreviver como uma teoria importante é o que nos propomos a explicar com todas as suas características. Em outras sociedades o Estado também tem uma participação fundamental tomando como três dos maiores exemplos em 2024; no caso os EUA, China e Rússia, cada qual com a sua especificidade e formas seculares de organização. No caso brasileiro a sua particularidade reside na sua forma de organização peculiar no que tange a permanência da continuidade das estruturas de poder seculares desde a fase colonial de organização e expansão imbricada por famílias diante da ordem estamental e das simbioses adaptativas de incorporação ao capitalismo tardio e dependente. O patrimonialismo contribui para a crítica da formação da estrutura social e política metamorfoseada na transição concomitante da ordem burguesa em ascensão, mesmo diante da ênfase aos seus problemas teóricos que na sua gênese são discutíveis e passíveis de questionamentos dos mais diversos. 

Isso não significa dizer que os núcleos familiares não possam aparecer em países de tradição não ibéricos ou típicos da cultura organizacional portuguesa, ao contrário, mesmo porque, em países milenares como a China e a Índia esse fenômeno permanece presente na estruturação dessas sociedades. Cabe aqui salientarmos as características peculiares da formação e da organização da estrutura social e política no Brasil, onde o conceito de patrimonialismo, mesmo que esse possa ser refutado, parcial ou integralmente por argumentações das mais diversas. Deve se ter em mente, que mesmo ao criticá-lo essa abordagem teórica permite várias possibilidades de recortes teórico-conceituais importantes no encaminhamento da compreensão de uma série de fenômenos sócio-políticos contidos nele. Nesse sentido precisamos ampliar essa discussão e condensar a temática envolvendo outros conceitos como forma de explicar a organização social e política no Brasil. 

Segundo Oliveira (2001; p. 198): 

“A compreensão da história política brasileira só pode ser empreendida através da sua explicação enquanto um processo dinâmico em curso. Nesse processo, as teses parciais podem ser sintetizadas em um movimento concreto nas relações de formação entre a classe dominante e o Estado. A tese da ordem privada ganha sentido ao analisarmos as práticas políticas da classe dominante frente ao aparelho de Estado. Quanto mais local for a sua esfera e mais antiga na história colonial, maior será a tendência do controle privatizante e patrimonial das classes dominantes. O tradicional mandonismo, através do qual os poderosos se utilizavam do Estado. Já a tese da forte presença do Estado nos fenômenos sociais, econômicos e estratégicos da formação brasileira aponta para o relevante papel do Estado na configuração nacional. A síntese dialética entre as duas posições já foi vislumbrada por alguns autores. Fernando Uricoechea em O Minotauro Imperial. Essa construção histórica onde os aparelhos estatais combinam um grau de dominância sob a responsabilidade e o controle dos servidores públicos de alto escalão e de outros grupos mandatários do poder são o resultado da construção do Estado brasileiro. Ao mesmo tempo, outras funções relacionadas ao aparato jurídico e das forças armadas locais e militares estabeleciam suas conexões e formas imbricadas de compartilhar o poder e as demais frações de classe que ainda agrupavam possuidores de grandes extensões de sesmarias e demais comerciantes durante a grande trajetória de expansão da formação do Estado, das classes sociais e da economia política brasileira”. 

A importância do conceito e da abordagem teórica do patrimonialismo enquanto conceito social e político deve ser considerado não apenas pela abordagem em si, mas principalmente pelas possibilidades de incursões teóricas que esse suscita. Ainda segundo Oliveira (2001; p. 199): Em nossa opinião, os conceitos de feudalismo e de patrimonialismo são insuficientes para a análise da formação brasileira. Ainda que possam ser utilizados para ilustrar aspectos específicos de algumas relações políticas, não conseguem apreender a lógica de funcionamento mais geral da sociedade de classes. Julgamos mais conveniente a conceituação do modo de produção escravista colonial como definido por Jacob Gorender, 1985 e de Estado escravista colonial como apresentado por Décio Saes, 1985. Desta maneira, como mencionado por Oliveira e já advertidamente introduzido nas abordagens anteriores, o patrimonialismo passa à margem das suas críticas sendo um conceito e uma abordagem teórica importante para a sociologia brasileira no que tange alguns aspectos específicos ou peculiares da formação política e social brasileira. Isso não significa que deva passar incólume acerca de severas críticas ou intervenções sérias, ao contrário, o caso de Jessé Souza em seu recente livro A Elite do Atraso mostra a importância do seu debate atual e da necessidade de uma investigação mais apurada de seus fenômenos sociais e políticos A ênfase na ordem privada é o espaço político da ação dos grupos da classe dominante local. Geralmente são os proprietários rurais e os comerciantes locais na sua ação frente ao aparelho municipal do estado ou os cargos locais e regionais. O seu papel enquanto fração da classe dominante subalterna dentro do bloco no poder indica a sua fragilidade perante as esferas superiores do aparelho de Estado. No período colonial, a fração hegemônica se identifica com os grandes grupos mercantis e com a alta nobreza da corte em Portugal. No Brasil Imperial, a grande propriedade exportadora escravocrata iria cada vez mais perdendo a sua hegemonia dentro do bloco no poder para os grandes grupos mercantis e a nova burguesia cafeeira no fim do século XIX. O conceito de bloco no poder apresenta as conexões entre as diferentes frações da classe dominante e o Estado. É a unidade contraditória das relações políticas envolvendo os conflitos entre as classes e as frações da classe dominante. A unidade do poder de Estado é realizada pela fração hegemônica. (POULANTZAS, 1977, p. 298) O Estado representa todas as frações de classe e grupos da classe dominante de maneira diferencial e contraditória. As disputas e os conflitos entre frações da classe dominante e o Estado são muito comuns. Mesmo o senhoriato rural que controlava o aparelho municipal do Estado conhecia determinados aspectos da autonomia relativa da ação dos quadros do Estado. Nesse aspecto o conceito de patrimonialismo também é bastante discutível perante a exposição de Oliveira, já que o próprio Estado além das contradições entre os polos de poder das frações da classe dominante passa a se posicionar nas mediações de forma distinta de antes do início da expansão da burguesia mercantil ainda no período imperial. 

A classe dominante mesmo a do senhoriato tradicional perde força, apesar de manter a mais relevante parcela de poder e estar imbricada nos aparelhos institucionais municipais ou locais e muitos regionais abarcando espaços de influência e dominação pela estratégia familiar de longa duração. As elites políticas nos seus diversos espaços de poder tiveram um importante papel no século XIX a partir da independência de 1822 e estiveram posicionados a frente da representatividade de vários negócios da classe dominante. Assim como no funcionamento do aparato burocrático de Estado nas funções administrativas, jurídicas e militares o legislativo opera sob a mesma lógica de poder a partir não apenas no que tange a representação dos interesses das frações da classe dominante como também muitos desses eleitos eram provenientes das famílias da burguesia em vários níveis hierárquicos. A organização social e política do Brasil desde as origens até o presente sempre adotou estratégias dos vínculos familiares na estruturação dessa sociedade e a literatura sobre o tema corrobora com todas as exposições teóricas até então. Segundo Freyre (2007; p. 81): A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas. A força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase reina sem governar. Os senados da Câmara, expressões desse familismo político, cedo limitam o poder dos reis e mais tarde o próprio imperialismo ou, antes, parasitismo econômico, que procura estender do reino às colônias os seus tentáculos absorventes. A literatura de Freyre e Faoro fortalece a ideia de que o Estado patrimonialista consegue se autonomizar e fortalecer perante o rei e o imperialismo ou colonialismo como se tudo pudesse e conseguisse controlar e abarcar como um “Leviatã” histórico de amplitude e complexidade que se espraia por todos os espaços da organização social e política onde as famílias têm lugar central na posição das elites e da classe dominante. 

O próprio Marx em muitas de suas abordagens reconhecia o poder geracional da classe dominante e adicionava aos aspectos que envolvem a economia política na sua crítica histórica. 

Segundo Marx (1973; p. 81): 

“As três formas principais em que o Estado surge sobre as ruínas da organização da gens foram analisadas atrás, pormenorizadamente. Atenas constitui a forma pura, clássica; ali, o Estado deriva direta e principalmente das oposições de classe que se desenvolvem dentro da própria sociedade da gens. Em Roma, a sociedade da gens torna-se uma aristocracia fechada, no meio da numerosa plebe, que fica de fora e tem deveres, mas não direitos; a vitória da plebe rompe a velha organização baseada no parentesco e constrói sobre as suas ruínas o Estado, em cujo seio tanto a aristocracia da gens como a plebe se vêem depressa totalmente absorvidas. 

Vejam que a abordagem de Marx recorre a questões hereditárias desde a antiguidade para procurar explicar o fenômeno social, político e histórico das formações sociais onde os gens aparecem de maneira recorrente em diversas sociedades, mesmo diante de guerras e situações que envolvem ruínas econômicas e confrontos intensos. As pesquisas e estudos que envolvem a hereditariedade como estratégia de dominação tem alcançado uma fatia cada vez maior de pesquisadores no Brasil. A devida importância dada as famílias como fenômeno social e político continua se ampliando no Brasil, principalmente nas Revista Direitos, trabalho e política social, últimas duas décadas em destaque na entrada do século XXI. 

A literatura macroestruturante da sociologia política, sociologia histórica, economia política, sociologia econômica, ciência política, antropologia, filosofia política, história e geografia podem em alguma medida conectar-se com as abordagens que relacionam estruturas de parentesco ou famílias com a classe dominante e ainda com as demais formas de organização política e social em várias dimensões, sejam elas locais, regionais, nacionais e transnacionais. Cabe uma aproximação maior com esse rico objeto de pesquisa a partir da apresentação de itinerários bibliográficos de pesquisa que procuram dar conta do fenômeno sociológico sobre as famílias e as estruturas amplas e complexas das relações de parentesco. Para eles, a perspectiva de se imprimir a tônica “família” na percepção política acaba sendo chave importante para compreensão das relações de poder no Brasil, do funcionamento das instituições e do jogo político, de forma geral. Determinados grupos familiares concentram historicamente, alguns por séculos, privilégios sociais, econômicos e, sobretudo, posições de prestígio. Mesmo em 2022 em plena pandemia de uma crise sanitária, econômica e política global, em especial no caso brasileiro, jamais na história ocorreu com essa dinâmica e alcance tal aspecto concomitante. O nepotismo, as estruturas de dominação política e social e o aumento brutal e avassalador do poder econômico e financeiro ainda no domínio familiar salta os olhos no Brasil, mesmo para pesquisadores experientes e atentos a essa dinâmica contemporânea.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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