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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

O cinema de Piotr Szulkin

Transcendência metafísica e materialismo histórico na trama cinematográfica

No sistema capitalista, sabe-se bem, as formas de artes terminam inseridas em esteiras de produção, cujos efeitos danosos, certamente, incidem na repressão da criatividade; nessas circunstâncias, livros, músicas, histórias em quadrinhos, peças de teatro, filmes etc. tornam-se excessivamente repetitivos, seja nos conteúdos ideológicos, seja nas formas de expressão estética. Por consequência, uma vez vinculada ao comércio e subordinada às regras da especulação financeira, a arte tende a justificar a ideologia dos patrocinadores cujas indústrias culturais, enquanto monopólios, buscam pela destruição das culturas locais, impondo, assim, os modos de vida e de exploração imperialistas.

Na música, por exemplo, a afirmação do sistema tonal e a uniformidade da afinação dos instrumentos musicais coincide com a ascensão de burguesia, quando o artesanato local perde espaço para as indústrias multinacionais; por isso, não causa espanto que, atualmente, os timbres das músicas japonesa, brasileira, cubana, espanhola etc. sejam quase os mesmos, afinal, trata-se dos mesmos instrumentos musicais, fabricados multinacionalmente, das mesmas gravadoras, responsáveis pelo comércio, e dos mesmos meios de comunicação, regidos pelos mesmos princípios das fábricas e das gravadoras.

No cinema, boa parte da produção dos países explorados pelo imperialismo termina relegada ao esquecimento nos próprios territórios; em sua voracidade, a indústria cultural cinematográfica não poupa sequer a Europa, haja vista o silenciamento de cinemas antes tão significativos, como foram, no século XX, os cinemas feitos na Espanha, França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Rússia. Dessa maneira, em meio a cineastas pouco conhecidos, vale a pena lembrar da ficção científica do polonês Piotr Szulkin, nascido em 1950 e falecido em 2018; para tanto, comentaremos dois filmes seus: (1) “A guerra dos mundos: próximo século”, de 1981; e (2) “O-bi, o-ba: o fim da civilização”, de 1985.

No primeiro, “A guerra dos mundos: próximo século”, logo na dedicatória, apresentada após os créditos iniciais, explicitam-se as alusões ao célebre romance de H. G Wells, “A guerra dos mundos”, publicado em 1897, em que o planeta Terra é invadido por marcianos, e à polêmica adaptação para programa de rádio feita por Orson Wells em 1938, tomada por verdadeira por numerosos ouvintes, gerando pânico na população e processos criminais para os produtores. No filme de Szulkin, semelhantemente ao romance e à radionovela, a Terra é invadida por marcianos, entretanto, em vez de guerra armada, com vistas a conquistar o planeta, opta-se por manipulação ideológica, corrupção política, imposições burocráticas e violência policial, todos eles denunciados ao longo da trama, com ênfase na manipulação ideológica, mediante intensa disseminação nos meios de comunicação, no estilo de Joseph Goebbels e seu ministério de propaganda nazista. Além do mais, o protagonista, quem ganha consciência política, é apresentador de televisão, divulgando notícias de pouca importância em seu programa diário, assistido por boa parte da população.

Na trama, Iron Idem, vivido pelo ator Roman Wilhelmi, sempre solícito diante dos produtores, certo dia se recusa a dar notícias a respeito das novas leis impostas pelos marcianos, entre elas, a doação de sangue obrigatória para todos os terráqueos, exceto alguns privilegiados, entre eles, aqueles produtores. No mesmo dia, ele passa a sofrer perseguições, entre elas, Idem é ameaçado de prisão, sua esposa é detida pela polícia política, eles perdem o apartamento, o acesso às contas bancárias e demais direitos; sozinho e completamente confuso, o apresentador termina concordando com todas as imposições dos produtores e censuras à liberdade de imprensa. Todavia, nada adianta, pois ele não recupera os bens nem consegue se comunicar com a esposa, tornando-se cada vez mais excluído; consequentemente, Idem se revolta, chegando a, em plena apresentação ao vivo de um show de música, produzido pela emissora de televisão, denunciar os abusos de que foi vítima. Infelizmente, ninguém lhe dá atenção… por fim, ele vai preso e condenado à morte, além de saber que o vídeo foi editado, neutralizando-se, assim, sua tentativa de subversão; ironicamente, sua imagem é utilizada contra ele uma última vez.

O filme levanta numerosas discussões, entre elas: (1) a fraqueza dos marcianos diante dos terráqueos, transformada em força mediante a corrupção da polícia política, formada pelos próprios terráqueos – Idem chega a matar um marciano com poucas pancadas, em encontro fortuito num banheiro público –; (2) o sangue deixa de ser metáfora da exploração humana, expressando-se em sentido literal – a força de trabalho, enquanto força vital, deriva da energia humana, portanto, os limites entre o sentido adequado e a metáfora se revelam tênues –; (3) a espetacularização e a falsificação da realidade com os meios de comunicação de massa, cuja função é favorecer as classes dominantes – no mundo contemporâneo, o imperialismo financia a cultura e a comunicação em todo planeta, construindo discursos enviesados –. Prefiro, porém, deter-me na cena final, quando a execução de Idem é televisionada; na trama, o ex-jornalista perece sentado numa cadeira, diante do pelotão de fuzilamento, entretanto, enquanto ele permanece sentado e morto, outro Idem se levanta, duplicando-se surpreendentemente, e some de cena, abandonando o defunto. Nessas circunstâncias, num filme de ficção científica sem referências ao terror ou ao sobrenatural, cabe indagar o significado disso.

Talvez, retirando-se do espetáculo televisionado, Idem se conscientize de que, seja trabalhando para os meios de comunicação, seja se contrapondo a eles, se a labuta ou o protesto se veiculam nesses mesmos meios, pouco importa a intensão do sujeito, o resultado é sempre a propaganda dos interesses de quem os patrocina; dessa perspectiva, sua morte é metafórica, tornando-se, assim, a morte da alienação. Entretanto, contrariamente, do ponto de vista metafísico, quem sabe Iron Idem morra para o mundo das ilusões, que não seriam apenas aquelas fabricadas pela propaganda ideológica, mas as da vã e suposta realidade do cotidiano, para, misticamente, despertar e transcender para planos astrais menos mesquinhos; na tradição hinduísta, Idem se daria conta de Maia, na budista, superaria o Sansara com vistas ao Nirvana, na versão de Platão, viveria o mito da caverna.

Na obra de Szulkin, o tema metafísico entremeado com o político aparece em outros filmes; para discutir essa relação, convém retomar a segunda obra sua citada, isto é, “O-bi, o-ba: o fim da civilização”. Trata-se de ficção científica com temática apocalíptica; na trama, após a guerra atômica de proporções mundiais, os poucos sobreviventes do planeta Terra se refugiam num abrigo subterrâneo, buscando se proteger da radiação e do inverno nuclear. Uma vez no abrigo e sob condições precárias de sobrevivência, em vez da esperada união e decorrente cooperação em nome da humanidade, as pessoas reproduzem, sordidamente, as práticas que, antes da guerra, levaram todos àquela triste realidade; rapidamente, instalam-se no refúgio dirigentes corruptos, polícias políticas, normas burocráticas insensatas, funcionários alienados, prostituição, tráficos e descaminhos de comida, bebida, drogas; há, inclusive, funcionários responsáveis pela propaganda interna do novo regime, autores do mito religioso cuja promessa principal reside na espera de uma arca mítica capaz de, igualmente às Arcas de Manu, no hinduísmo, ou de Noé, no judaísmo e no cristianismo, regatar aqueles poucos sobreviventes, preservando-os, assim da extinção iminente, pois o lugar, construído em condições precária, encontra-se em vias de desmoronar.

O protagonista do filme, Soft, um funcionário da propaganda e manutenção da ordem no abrigo, vivido pelo ator Jerzy Stuhr, envolve-se numa série de desventuras para solucionar os incessantes problemas e desastres cotidianos; responsável pela elaboração, desenvolvimento e manutenção do mito da arca, ele sabe da mentira, vivendo intensamente essa contradição, chegando, porventura, a acreditar nela. No final da história, o inevitável desastre enfim acontece; exposto ao frio mortal, arrastando-se através da neve, Soft vislumbra a arca descendo do céu e, uma vez lá em cima, ele consegue se ver morrendo lá embaixo, semelhantemente ao jornalista Iron Idem, do filme anterior.

Comparando-se as duas obras, se na primeira a metáfora religiosa surge menos explicitamente, entremeada com menções à propaganda política e ideológica, no segundo filme ela se evidencia, demarcando dois mundos, um material, palco da opressão e da infelicidade, e outro metafísico, de ordem transcendental, reino da consciência, portanto, da libertação. As soluções de Szulkin, todavia, não são religiosamente convencionais, pois, diferentemente das tramas míticas e religiosas, em que o protagonista adquire conhecimento das ordens sobrenaturais regentes da vida e do mundo material, em “A guerra dos mundos: próximo século” ou “O-bi, o-ba: o fim da civilização”, Idem e Soft, diante do materialismo histórico, ganham consciência social. Dessa maneira, cabe indagar qual a natureza dessa transcendência, cujo acesso se dá mediante vivências e conhecimentos políticos.

Uma vez transposta a barreira construída pela ideologia, ambos os protagonistas conseguem se ver imersos nas mazelas do mundo, todas elas geradas pela opressão política, deparando-se, ademais, com as próprias mortes; diante de tais evidências, estariam os seres humanos fadados a se voltarem uns contra os outros, a ponto de se destruírem mutuamente? A história humana é longa; não se deve estar limitado, para buscar compreender nossa natureza, a apenas às eras das grandes civilizações, supostamente, da Suméria até os dias atuais, os tempos do imperialismo, fase superior do capitalismo.

O chamado Período Paleolítico ou Idade de Pedra Lascada tem início a 2,5 milhões de anos atrás e termina por volta de 10000 anos, ao começar o Neolítico, quando nossos antepassados se iniciam nas práticas da agricultura, findando, por sua vez, aproximadamente em 3300 a.C., o início da Idade dos Metais, ou melhor, da Idade do Cobre e do Bronze. Acompanhando as datas e as práticas daqueles hominídeos, verifica-se que nossos antepassados viveram mais tempo lascando pedra do que fabricando outras ferramentas; nossa evolução mental, capacitando-nos para resolver operações formais, data de pouco tempo na história humana; da agricultura à inteligência artificial, são poucos 12000 anos, equivalentes a 0,48% do período anterior. Nessas circunstâncias, cabe indagar como o homem lida com outras ferramentas, além de operações formais e práticas agrícolas; referindo-se, especificamente, a práticas sociais tais quais a solidariedade, a distribuição justa da terra e a divisão social do trabalho, verifica-se, infelizmente, que o homem lida melhor com as pedras que com os semelhantes. Em nossos tempos, o comunismo, enquanto pensamento político, se comparado com a superação da pedra lascada, representaria avanços semelhantes nas operações mentais com vistas ao futuro da humanidade, colocando o capitalismo e demais divisões injustas do trabalho e da concentração de poder, em relação a ele, algo comparável à pedra lascada em relação à pedra polida. Dessa maneira, seria necessária uma evolução mental para a superação das lutas de classes e suas mazelas, essas, sim, capazes de fazerem os humanos parecerem inferiores não apenas aos demais primatas, mas a quaisquer animais?

Nos filmes de Piotr Szulkin, discussões assim, com cogitações sobre a evolução humana, de cunho antes filosófico que político revolucionário, não são levadas tão longe; as tendências às interpretações metafísicas e religiosas de sua obra parecem se impor, afinal, nas duas tramas citadas, os protagonistas, apesar dos percursos políticos, morrem para transcender. Nessa leitura, a vida social se torna palco de castigos e de injustiças, cuja única libertação seria a morte; cabe, entretanto, motivado pelas reflexões levantadas nos filmes, contrapor-se ao pessimismo lúcido de Szulkin, propondo outros debates, longe dos pelotões de fuzilamento e sem arca para nos salvar.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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