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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

A poesia de Ernesto Manuel de Melo e Castro

Poesia visual e conceitual em língua portuguesa

No dia 19 de abril de 2017, o poeta E M de Melo e Castro, falecido no dia 29 de agosto de 2020, fez 85 anos; naquele dia, eu tive o prazer de participar do lançamento do livro “Poemas Conceptovisuais”, cuja edição também esteve sob meus cuidados. O que seriam, entretanto, poemas conceptovisuais? São poemas visuais, propostos pelo Ernesto, ativista da poesia experimental portuguesa da segunda metade do século XX, a PoEx; neles, porém, há também remissões à arte conceitual, outra vanguarda dos tempos modernos.

Nessas circunstâncias, o que é poesia visual? Certamente, toda poesia concreta é poesia visual, porque toda poesia concreta é verbivocovisual, quer dizer, envolve o trabalho poético com a língua, a dicção e a visualidade da palavra escrita; contudo, toda poesia visual seria, necessariamente, poesia concreta?

Poesia visual designa um conceito bastante abrangente; a rigor, toda poesia composta para ser lida, torna-se poesia visual. A poesia beat, contrariamente, é essencialmente verbal, composta antes para ser escutada, declamada em voz alta, do que para ser lida; afeito à performance e ao jazz, o poeta beat, frequentemente, improvisa a partir de temas estabilizados, feito ocorre na estrutura tema-improviso do jazz. Lawrence Ferlinghetti, nas “Mensagens orais”, explicita essa técnica de composição, apresentando sete temas verbais, sobre os quais se improvisam os setes poemas da série; dessa maneira, porque são improvisos, tais poemas configuram, nas palavras do próprio Ferlinghetti, formas mutantes. Os temas e os poemas de “Mensagens orais” são estes, na ordem tema-título, respectivamente: “estou esperando” – Estou esperando; “vamos” – Obbligato do bicho louco; “eu estou levando uma vidinha mansa” – Autobiografia; “o cachorro vai livre pela rua” – Cachorro; “Cristo abandonou” – Cristo abandonou; “e a rua longa” – Rua longa; “conheça Miss Metrô” – Conheça Miss Metrô.

Ernesto, ademais, faz poesia nesse regime de composição; o seu poema “Tempo dos tempos” se desenvolve a partir do tema “Se nos tempos da Bíblia houvesse Jazz!” e seus desdobramentos; eis a primeira de suas quinze estrofes:

Se nos tempos da Bíblia houvesse Jazz! / Ah! Se nos tempos da Bíblia houvesse Jazz! / Se nos tempos houvesse Jazz / O ritmo renovado do Jazz / O ritmo sincopado do Jazz / O ritmo sanguíneo do Jazz.

A poesia, mediante a língua, isto é, por meio de uma semiótica verbal, expressa-se em significantes prosódicos e fonológicos; contudo, uma vez escrita, as letras assumem a expressão das semióticas visuais, com as cores, as formas e as posições das letras na página ganhando sentido, além do registro. Dessa perspectiva, caso o poeta se conscientize de tal plasticidade, fazendo com que a expressão poética, além de prosódico-fonológica, abranja também o cromatismo, as formas e a topologia das letras, a poesia se torna poesia concreta.

A composição “círculo aberto – ritmo liberto”, do Melo e Castro, é poema concreto, com a disposição das letras indo ao encontro dos significados do poema (o poema se encontra reproduzido no final do texto – primeira imagem). Assim, embora nos dois poemas citados do Melo e Castro, os conteúdos se assemelhem, pois se tematiza a música, “Se nos tempos da Bíblia houvesse Jazz!” é analítico-discursivo, desenvolvendo-se por meio de observações e argumentos, enquanto “círculo aberto – ritmo liberto” é sintético-ideogramático, quer dizer, com a ideia sintetizada na forma visual, segundo a terminologia dos próprios concretistas.

Quando há correlações entre os significados e os significantes verbais da língua e os significantes visuais da escrita, trata-se de poesia concreta e, porque há composição plástica envolvida, trata-se de poesia visual. Todo poema concreto, portanto, é poema visual, contudo, nem todo poema visual é poema concreto; relacionar poemas a imagens de desenhos, pinturas e fotografias gera poemas visuais, que não caracterizam poemas concretos, mas, por implicar correlações com imagens visuais, forma-se poesia visual.

Na literatura portuguesa, em seus “divertimentos com sinais ortográficos”, Alexandre O’Neill relaciona poesia com imagens gráficas; os versos “Uma alegria de vírgulas em fuga / de um texto mais difícil que uma purga” e “Se alguma janela aberta o incomoda / Peça ao condutor que a feche”, por exemplo, relacionam-se, respectivamente, com imagens de vírgulas e pontos de exclamação (os poemas se encontram reproduzidos no final do texto – segunda e terceira imagens, respectivamente). Já na literatura brasileira, no calendário Philips, Décio Pignatari relaciona poesias com fotografias; eis uma delas (a fotografia se encontra reproduzida no final do texto – quarta imagem):

Nem só a cav / idade da boca // Nem só a língua // Nem só os dentes / e os lábios // fazem a língua // Ouça / as mãos / tecendo a língua / e sua linguagem // É a língua / têxtil // O texto / que sai das / mãos / sem palavras

Em ambos os casos, tanto nas composições de O’Neill quanto Pignatari, há poesia visual sem ser poesia concreta. Ainda no tema, alguns poetas visuais, como Edgard Braga, compõem poesia visual atribuindo títulos a imagens, concebidas pelo poeta; a série “tatuagens”, de Braga, da qual faz parte poemas feito “Canto das vogais” (o poema se encontra reproduzido no final do texto – quinta imagem), e os poemas de “concepto incerto”, de Melo e Castro, tais quais “a perspectiva não é uma lei rigorosa” e “o interior dos sólidos é um plano”, são exemplos desse gênero de poema visual (os poemas se encontram reproduzidos no final do texto – sexta e sétima imagens, respectivamente).

Retomando os poemas conceptovisuais, percebem-se, neles, procedimentos poéticos de “concepto incerto”; todavia, diferentemente daquele livro, em que a poesia visual de Melo e Castro, embora eivada de ironia, assume tom próximo da filosofia, em “conceptovisuais” o poeta investe no humor. Assim, longe da elaboração das imagens de “concepto incerto”, entretecidas com máximas filosóficas e paradoxais, com o poeta concebendo a imagem a reproduzir o mesmo significado das frases, em “conceptovisuais”, diferentemente, a ironia e os chistes derivam dos paradoxos entre as imagens e os títulos atribuídos; por tais motivos, trata-se de poesia conceitual, pois o poético surge nas correlações entre o pensamento e as imagens, que, longe de ilustrarem o significado dos títulos, conferem novos sentidos a eles, ao mesmo tempo em que, por meio deles, ganham novos sentidos.

Por concluir, referindo-se a tal disseminação semântica, logo na primeira parte do livro, o primeiro poema conceptovisual se chama “simulação do simulacro” (o poema se encontra reproduzido no final do texto – oitava imagem); discutindo a significação, isto é, o mundo enquanto linguagem, Ernesto nos envolve em elucubrações semióticas, afinal, a linguagem é um simulacro, de um simulacro, de um simulacro…

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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