Ricardo Rabelo

Ricardo Rabelo é economista e militante pelo socialismo. Graduado em Ciência Econômicas pela UFMG (1975), também possui especialização em Informática na Educação pela PUC – MINAS (1996). Além disso, possui mestrado em sociologia pela FAFICH UFMG (1983) e doutorado em Comunicação pela UFRJ (2002). Entre 1986 e 2019, foi professor titular de Economia da PUC – MINAS. Foi membro de Corpo Editorial da Revista Economia & Gestão PUC – MINAS.

Coluna

Coreia vence!

"Se queremos democracia real temos de pôr em questão o capitalismo!"

Há 43 dias após o golpe de 3 de dezembro e 32 dias após a aprovação do impeachment em 14 de dezembro, o golpe de Estado tentado pelo presidente deposto da Coreia do Sul, Yoon Suk Yeol, foi finalmente derrotado com a sua saída do palácio oficial e sua prisão pelas autoridades policiais. Sua prisão faz dele o primeiro presidente em exercício na história do país a ser preso. Funcionários do Escritório de Investigação de Corrupção (CIO) disseram que Yoon se recusou a falar durante duas horas e meia de interrogatório e se recusou a ser filmado. Os apoiadores do de Yoon Suk Yeol, manifestaram-se em Seul após a sua detenção na sua residência presidencial.

A derrota do golpe se deu como o resultado da luta persistente dos trabalhadores e do povo contra as ações de Yoon Seok Yeol e das forças de extrema direita que ainda falam de guerra civil. Isto acontece porque estas forças, incluindo o Partido do Poder Popular, que apoia abertamente o hediondo golpe civil e militar de Yoon Seok-yeol, ainda estão vivas. Na verdade, nada mudou nas vidas dos trabalhadores e das pessoas que são oprimidas pela lei marcial que ainda impera na sua vida quotidiana. A prisão de Yoon Seok-yeol deveria ser um novo ponto de partida para uma luta ainda maior. Para isso é importante analisar a trajetória da mobilização popular que possibilitou esta vitória.

Anatomia da derrota do golpe: o ascenso da mobilização popular

Após o fracasso do golpe de Estado de 3 de dezembro de 2024 na Coreia do Sul, e graças a uma mobilização permanente nas ruas, foi decretada a destituição do presidente Yoon Suk-Yeol pela Assembleia Nacional. A tentativa de golpe militar, amplamente conhecida e apoiada pelo imperialismo estado-unidense, desencadeou uma verdadeira revolta social contra o presidente golpista e contra o seu partido de direita, o PPP.

No entanto, semanas após a sua destituição, e apesar de ter sido emitida uma ordem de detenção contra ele pelos tribunais e pela agência anticorrupção da Coreia do Sul, Yoon resistiu à prisão de forma violenta. A razão, segundo os meios de comunicação ocidentais, é a resistência da sua Guarda Presidencial frente aos policiais que tentavam detê-lo e a existência de manifestantes pró-golpe organizados em torno da sua residência para protegê-lo. Obviamente, se quisessem detê-lo, teria sido fácil, mas é importante saber que ele continuou tendo apoio de setores do aparelho do Estado , da burguesia coreana e do imperialismo que estiveram implicados no golpe militar.

Esta “frente golpista” tenta reorganizar as suas forças para poder, em outro momento, enfrentar o poderoso movimento que durante estas semanas ocupou as ruas exigindo julgamento e punição para todos os responsáveis. Uma realidade que não pode ser desconsiderada, e que se poderia tornar o ponto de partida para um novo golpe de Estado favorável à reação e ao imperialismo estado-unidense.

Nada será como antes

A Confederação Coreana de Sindicatos (KCTU) convocou imediatamente a greve geral indefinida, impulsionando mobilizações massivas nas ruas, e milhares de manifestantes se plantaram em frente à Assembleia Nacional para confrontar as forças armadas que tentavam dissolvê-la e deter uma parte dos líderes da oposição. Segundo fontes, uma dessas ordens de detenção foi direcionada a Yang Kyeung-soo, presidente da KCTU.

Nos dias seguintes ao fracasso do golpe, as greves espalharam-se: os ferroviários pararam de 5 a 11 de dezembro, assim como o metrô de Seul; no sector metalúrgico, com a poderosa indústria automóvel, ocorreram greves em empresas como Hyundai Motors, Kia e GM. A 6 de dezembro a greve estendeu-se ao sector educativo, e nos dias seguintes numerosas empresas e sectores se juntaram à greve. Apesar dos apelos dos dirigentes da oposição à calma, milhões de pessoas exigiram a destituição imediata de Yoon nas ruas.

No entanto, no dia 7, na primeira votação da Assembleia Nacional para destituí-lo, todos os deputados do seu partido, exceto três, se ausentaram, impedindo que se chegasse à maioria de 2/3 necessária para tornar a destituição efetiva. Nesse mesmo dia, o movimento reuniu um milhão de pessoas nas ruas. A pressão foi tão grande que as rachaduras no regime e no PPP se aprofundaram.

Uma semana depois, dois milhões de manifestantes cercavam a Assembleia Nacional, ocorrendo manifestações semelhantes em outras cidades importantes. Como resultado dessa pressão, e do medo de setores da classe dominante e do imperialismo estado-unidense de que a situação se descontrolasse ainda mais, a Assembleia Nacional finalmente votou a sua destituição, com 12 votos de deputados do PPP, alcançando os 2/3 necessários para suspender a sua presidência. Segundo as pesquisas, 75% da população era favorável à sua destituição. No entanto, essa decisão ainda teve de ser confirmada pelo Tribunal Constitucional, controlado pelo partido de Yoon. A dominação da frente golpista tem, portanto, bases firmes no Judiciário. 

Infelizmente, após a destituição, o presidente do sindicato KCTU publicou um comunicado terminando a greve geral indefinida convocada desde 3 de dezembro. Foi um erro político que poderia ter sido fatal o que denota uma confiança da Central Sindical na burguesia e nas instituições burguesas. A Central declarou que continuaria a lutar para garantir que o Tribunal Constitucional confirmasse a deposição do ditador e que cassasse o registro do PPP, devido à sua participação no golpe, e por reformas sociais necessárias para o país, no sentido de acabar com a brutal desigualdade existente. No entanto, como a experiência históricas tem demonstrado, para garantir que não houvesse um novo golpe de Estado, só seria possível mantendo a pressão nas ruas, e utilizando a ferramenta mais poderosa do movimento dos trabalhadores, a greve geral.

Apesar deste recuo da direção do KCTU, as manifestações nas ruas não cessaram, uma vez que existia uma grande desconfiança mais num sistema judicial arbitrário e cúmplice do golpe. Em 21 de dezembro, numa nova mobilização em Seul, mais de 300 mil pessoas exigiam novamente a renúncia e a prisão de Yoon. Ficou famosa a declaração de uma manifestante, Kim Myoung-Sook, de 60 anos, que afirmou que “a lei marcial é uma declaração de guerra ao povo”.

Em todo este processo, as mulheres, jovens e trabalhadoras estiveram na linha da frente de batalha contra um governo que lhes declarou guerra, promovendo uma campanha de criminalização contra o movimento feminista, à semelhança de Trump, Milei e o resto da ultradireita mundial, e políticas misóginas e machistas num país com a maior disparidade salarial de gênero de toda a OCDE. Às manifestações juntaram-se também dezenas de milhares de jovens, e até os agricultores, que marcharam para Seul com os seus tratores exigindo a destituição de Yoon e a revogação de uma Lei aprovada pelo Governo que beneficia as grandes multinacionais da alimentação.

A reação tenta ganhar tempo

A crise do regime coreano, um dos mais estáveis até agora na Ásia e modelo de democracia para a propaganda ocidental contra a “perversa ditadura” norte-coreana, aumentou enormemente. O golpe de Estado foi, na verdade, uma reação do governo direitista a uma profunda crise de ingovernabilidade, com a Assembleia Nacional enfrentando o governo devido ao orçamento de austeridade neoliberal para 2025, à renovação do Tribunal Constitucional e um acúmulo de reivindicações da população contra as medidas reacionárias do governo, além de revelação de crimes de corrupção do ex-presidente e a sua esposa.

No entanto, por trás dessas razões formais, existem causas mais profundas. Por um lado, a grave crise que afeta o capitalismo coreano, com uma falência da política habitacional oficial, e um movimento dos trabalhadores em ascensão que exige melhores salários e condições de trabalho, além de lutar para acabar com a enorme. Como exemplo, o governo tentou aumentar o limite legal da jornada de trabalho já infame de 52 para 92 horas semanais. A luta feminista também colocou em destaque o machismo e a misoginia de uma sociedade conservadora, tornando-se um alvo central da reação.

Outro fator importante é a batalha que se trava na Coreia, assim como no resto do mundo, entre os dois grandes blocos imperialistas, EUA e China, pela hegemonia mundial. A própria notícia da participação de tropas da Coreia do Norte na Ucrânia a favor de Putin, e a assinatura do Tratado de Parceria Estratégica Abrangente entre a Coreia do Norte e a Rússia, que entrou em vigor no dia seguinte ao golpe, aumentaram ainda mais estas tensões. O governo direitista de Yoon reagiu anunciando o envio de armamento para a o regime fascista Zelensky da Ucrânia e aprofundando as suas alianças com os EUA. Uma medida inusitada do governo renunciando aos pedidos históricos de indenização da Coreia do Sul pelo genocídio brutal do Japão provocou uma onda de indignação em vastos setores da população.

A justificação oficial para o golpe, de que a oposição estaria ao serviço da Coreia do Norte, não é verdade, pois é uma oposição social-democrata, direitista. A questão é que a queda do nível de vida dos trabalhadores na Coreia tem se acentuado, com a ultra exploração da força de trabalho pelas poucas famílias que controlam 90% da indústria e da economia coreanas. É uma classe dominante extremamente violenta e ditatorial, sem qualquer concessão às classes trabalhadoras. Por outro lado , a situação na Coreia do Norte com uma economia que tem obtido certo dinamismo e a existência de uma melhor distribuição de renda, acaba por desmentir a propaganda anticomunista do regime. Além disso, o Governo de Yoon, totalmente submisso ao imperialismo estado-unidense, não cessou nas suas provocações ao regime de Pyongyang, com o intuito de justificar uma escalada militar e agora a lei marcial. Desde março, a Coreia do Norte denunciou a presença de drones sul-coreanos no seu espaço aéreo, e em outubro e novembro alguns desses drones lançaram milhares de panfletos em vários pontos de Pyongyang. 

Estas provocações envolvem exercícios militares conjuntos com os EUA que são cada vez mais agressivos contra a República Popular da Coreia. A Coreia do Sul ocupa uma posição estratégica em relação ao controle do mar da China Oriental, e os EUA têm mais de 28.000 militares no seu território, sendo o terceiro país do mundo com mais bases e pessoal militar estado-unidense. Em outubro, a Administração Biden renovou o acordo de colaboração militar pelo qual a Coreia pagará aos EUA 1 bilhão de dólares por esta invasão militar, acordo que foi ratificado pela oposição na Assembleia Nacional, mostrando a sua cumplicidade com o governo.

A realidade é que a China adquiriu uma grande importância, e cada vez mais decisiva, para a indústria coreana. Este fato leva a classe dominante não desejar um confronto com a China, o que explica a ambiguidade da oposição que tenta equilibrar-se entre Washington e Pequim. O fracasso do golpe, portanto, constituiu um revés para o imperialismo estado-unidense, que foi surpreendido pela reação popular ao golpe e percebe que sua propaganda contra a China de Xi Jinping é ineficaz. 

Embora já tenham renunciado o Procurador-Geral e o ministro da Defesa, que foi detido, Yoon tenha sido destituído e preso, o “novo” presidente, que era e continua a ser o atual primeiro-ministro, está na mira da Assembleia Nacional, que quer o destituir se bloquear a renovação do Tribunal Constitucional. O Tribunal, com quatro dos seis membros nomeados por Yoon, tem três vagas que precisam ser preenchidas para que o caso do ex-presidente seja tratado.

A oposição, liberal e pró-capitalista, e também acusada de corrupção, quis o tempo todo, reduzir tudo à mera batalha legal e parlamentar, e por isso não deixava de apelar à calma, tentando pôr fim à revolta massiva nas ruas. No entanto, uma grande parte do aparelho de Estado esteve envolvida no golpe e poderá tentar de novo se não houver pressão popular.

O PPP e o ex-presidente Yoon, assessorados por Washington, tentam ganhar tempo e evitar novas eleições presidenciais que certamente darão a vitória ao Partido Democrático e ao restante das forças da oposição. A oposição, apesar de não ser de esquerda, não é confiável para o imperialismo. Ela pode adotar medidas no plano militar, econômico e militar que seja inaceitável para os EUA. Esta perspectiva pode, inclusive, impedir a consolidação do bloco militar entre os EUA, Japão, Coreia do Sul e Taiwan, em confronto com o inimigo chinês. Além disso, um desfecho deste tipo animaria a oposição do Kuomintang em Taiwan, também favorável a relações amigáveis com a China.

Greve geral para parar a reação e os golpistas!

Enquanto procuram ganhar tempo, o PPP está a tentar reunir a sua base social. Perante as hesitações da Assembleia Nacional, Yoon passou à ofensiva, mobilizando setores ultradireitistas e mais conservadores para contrabalançar a mobilização de massas contra o golpe. Mesmo não conseguindo igualar as manifestações da oposição, há poucos dias conseguiram reunir cerca de 30.000 pessoas agitando bandeirinhas dos EUA.

A alternativa frente ao perigo da reação e de um novo golpe de Estado é impossível de ser construída pela ação legal e parlamentar. Os partidos da oposição, principalmente o Partido Democrático, de orientação liberal-social-democrata, são muito vinculados à classe dominante, e não têm na sua agenda reverter a degradação social nem a precarização do mercado de trabalho. Eles rejeitam a nacionalização dos grandes conglomerados empresariais que dominam o país e dificilmente vão levar à frente a necessária depuração completa do aparelho de Estado, para eliminar os participantes ou apoiantes do golpe. É muito difícil que nesta depuração atinjam representantes do imperialismo estado-unidense, totalmente implicado no golpe.

A mobilização a partir de baixo, através da ação direta, com manifestações de massas e greves é a única ferramenta capaz de impedir a reação que tenta ressurgir nas ruas. Para tal é fundamental o papel do movimento sindical, especialmente o poderoso KCTU, que agrupa mais de um milhão de trabalhadores, muitos dos quais em setores decisivos.

É preciso, também, dotar-se de um programa político com reivindicações claras que vão além das medidas contra o golpe, e que proponham medidas econômicas radicais para acabar com a precariedade, os baixos salários, a pobreza e a desigualdade, com esses grandes conglomerados empresariais que, na prática, dirigem o país. Se queremos democracia real temos de pôr em questão o capitalismo!

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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