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África

Para onde vai o Líbano?

O Líbano é um dos países cuja própria existência vem sendo colocada em questão

O Líbano é um dos países cuja própria existência vem sendo colocada em questão. Fustigado pelo imperialismo norte-americano, de um lado, pelas regulares ações militares de Israel, por outro, o Líbano passa desde 2019 por uma enorme crise econômica que praticamente destruiu a economia do país. A estruturação da própria nação libanesa é fortemente prejudicada pela fragmentação determinada pelo grande número de denominações religiosas, que opõe muçulmanos e cristãos e que levou o país a uma devastadora guerra civil de 1975 a 1990, sendo o país ocupado militarmente por Israel e Síria, além da presença de forças palestinas.

Em 1990 firmou-se o Acordo de Taif, que determinou que a Assembleia Nacional deve ter igual número (64) de deputados cristãos e muçulmanos e que os cargos de presidente, primeiro-ministro e presidente da Assembleia Nacional devem ser ocupados respectivamente por um cristão maronita, por um muçulmano sunita e por um muçulmano xiita. Pois esta aparente fórmula matemática esconde ainda um conflito político muito forte, que impede desde Outubro de 2022 que o país tenha um Presidente. Já foram 12 reuniões da Assembleia Nacional , que terminaram sem definir por maioria o cargo que atualmente é ocupado interinamente pelo Primeiro Ministro, Najib Mikati. A 13ª. Reunião ainda não tem data definida e a crise política continua.

A crise econômica

O Líbano viveu durante trinta anos em aparente estabilidade e crescimento econômico, comandado pelo Presidente do Banco Central, Riad Salameh, que estabeleceu o cambio fixo de 1.507,50 lira libanesa por dólar. Esta política cambial manteve a estabilidade monetária e uma valorização da moeda, permitindo um nível de consumo razoável para a maioria e elevado para a elite. O problema é que a economia libanesa é primário exportadora, sem que haja uma grande commoditie na sua balança comercial. O “milagre” era feito com atração de volumosos capitais do exterior em troca de uma alta taxa de juros que era mantida alta pelo chamado esquema Ponzi: cada novo capital que entrava tinha que trazer novos capitais. Isto se baseava na suposição da manutenção de alto fluxo de entrada de capital, que se manteve até 2019. A partir de 2001 a economia mundial começou a ter problemas e em 2002 o Líbano teve que “passar o chapéu” para manter o fluxo de dólares. Foi ajudado pela Arábia Saudita e mais um grupo de países que investiram no país. 

Sobreveio a crise de 2008 e o mercado de capitais mundial passou a oscilar nos direcionamentos de suas aplicações internacionais. O resultado é que o ritmo de entrada de capitais no Líbano não era mais suficiente para possibilitar as altas taxas de juros oferecidas. A queda rápida desse fluxo de capitais pode ser atribuída também a fatores políticos, pois o Líbano é visto pelo imperialismo como hospedeiro de grupos considerados terroristas como o Hezbollah. Com a falta de dólares para honrar as aplicações, os bancos fizeram uma operação confisco, semelhante à feita no Brasil pelo Governo Collor. Bloquearam as contas correntes, estabelecendo limites para pagamentos ou saques e cancelaram os depósitos em dólares. De repente, estabeleceu-se o caos financeiro, com a nova taxa de câmbio sendo fixada arbitrariamente pelos bancos em 8000 libras libanesas para um dólar . Isto resultou em uma brutal perda de poder de compra para os assalariados que viram salários de US$ 900,00 reduzidos para US$ 180, o desemprego aumentando em 40% entre os jovens e uma hiperinflação que encareceu até os bens primários. Além de uma dívida pública de mais de 170% do PIB, alimentada por uma enorme expansão de gastos públicos agora sem uma receita que pudesse suportá-los.

A população saiu às ruas em protestos gigantescos, inicialmente contra anunciados aumentos de impostos, mas que logo se dirigiram contra o governo e exigindo inclusive o fim da ditadura confessional que foi , na verdade, a principal patrocinadora da farsa cambial e financeira. A crise foi resolvida com a renúncia do 1º. Ministro e atribuindo-se toda a culpa do descalabro financeiro ao presidente do Banco Central, que, no entanto, só foi substituído em julho de 2023.

Já a substituição de cargos no Governo se tornou uma verdadeira febre, símbolo da estrutural crise política provocada pelo fato do país estar no centro do confronto entre o imperialismo e seu aliado preferencial Israel (que já deu sua cota de contribuição à destruição do Líbano com uso de forças militares violentas-) com os seus principais inimigos na região. Um destes inimigos é o Hezbollah, ligado ao Irã, principal força política e militar de defesa dos palestinos e de resistência a Israel e que foi responsável pela virtual expulsão das tropas israelenses que ocuparam uma parte do país. Também tem influência direta no país, com campos de refugiados, a Síria e os palestinos cujas forças políticas entram frequentemente em conflitos armados. 

O papel do imperialismo

O Líbano foi dominado pela França até 1943, quando se torna independente. Mas a França continua tendo uma influência política direta no país, com autoridades francesas intervindo até mesmo na formação dos governos.

Mas o principal imperialismo dominante do país é o próprio Estados Unidos e o faz de forma prepotente e violenta, embora deixe as ações militares contra o Líbano por conta de Israel. Ao contrário de outros países , como os integrantes da Liga Árabe , a Arábia Saudita e até mesmo o Iraque, não há nenhuma contribuição dos EUA ao país, seja econômica, social ou política. 

No auge da crise econômica ou logo após a explosão do porto em Beirute em 2020, os EUA se preocuparam em incentivar as ONGs para transformar os protestos populares em uma operação de mudança de regime. O governo Trump aplicou no Líbano a mesma estratégia de “pressão máxima” que usou contra a Venezuela: sanções se multiplicaram contra as autoridades e empresários libaneses que eram julgados “aliados do Hezbollah”. 

O motivo para isto é que os EUA, como sempre, não aceitam a democracia a não ser a sua própria cleptocracia. A Assembleia Nacional do Líbano possui 15 deputados eleitos do Hezbollah, que tem como aliado o grupo Amal, também xiita, com outros 15 deputados. Isto significa que, para os Estados Unidos e Israel, o Líbano é um inimigo e a única estratégia possível contra ele é a “mudança de regime”, ou seja, implantar ali mais uma ditadura tecnocrática tão ao gosto dos EUA. Com esse objetivo, inicialmente a ênfase foi dada à ação militar. A guerra dos EUA contra a Síria foi feita fortalecendo os famosos grupos da guerra ao terror: Estado Islâmico, Al Qaeda e outros menores. O Hezbollah enfrentou estes grupos jihadistas e -salafistas militarmente e conseguiu expulsá-los, tanto da Síria, como do Líbano, nesse caso em colaboração com milícias cristãs, sunitas e drusos, e o próprio exército nacional libanês.

Diante de seu próprio fracasso no componente militar da guerra na Síria, Washington se voltou então para a guerra econômica em larga escala. Foi decretada a chamada Lei César que entrou em vigor em junho de 2020, e prevê sanções aos aliados e ao próprio regime sírio, de Bashar al-Assad. Essas sanções buscam intervir nas relações econômicas e diplomáticas da Síria, para evitar investimentos e fornecimento de materiais para o país. Para o Líbano isto significou, desde então, estar sob cerco econômico, já que faz fronteiras apenas com Israel, considerado inimigo do país, e a Síria.

Além disso, os EUA impuseram sanções aos libaneses ricos que vivem no exterior e a mais de um banco, injetando na população um grande medo de ser acusada de apoiar o terrorismo ou de ver suas economias confiscadas pelas autoridades norte-americanas no exterior. Isso levou o Líbano a uma escassez de vários bilhões de dólares em dinheiro que os membros da família costumavam mandar do exterior para seus parentes.

Um exemplo do genocídio do Líbano pelo imperialismo

Uma questão relativamente simples para vários países, a geração e distribuição da energia elétrica é o principal problema para o Líbano hoje. O país vive já há alguns anos sem o fornecimento normal de energia elétrica. A matriz energética é toda baseada em termelétricas, que funcionam à base de diesel. Durante muitos anos, apesar de alguma deficiência, a rede funcionou razoavelmente. Depois da crise de 2019 passaram a escassear dólares no país e a compra de petróleo passou a ser cada vez mais proibitiva para o país. Em 2021 o país foi obrigado a simplesmente desligar suas principais usinas termoelétricas. Desde então o fornecimento médio de eletricidade tem sido de duas horas diárias, quando não ocorrem apagões. Isto tem levado as populações ao desespero, pois a falta de energia elétrica impede a conservação dos alimentos, cujo fornecimento é precário, além da falta de água.

Em função desta situação trágica o governo adotou uma estratégia de trazer de outros países o fornecimento de gás para gerar eletricidade. O principal obstáculo está relacionado com a passagem de gás e eletricidade pela Síria, o que lhe dá direito a uma taxa de trânsito. Chegou-se a um acordo com Damasco que não imporia taxas, mas que receberá 8% do gás que passará pelo seu território. Todos estavam de acordo: o Banco Mundial, a Jordânia, o Egipto e a Síria. No início, os EUA apoiaram o projeto. No entanto, os EUA negaram à emissão de autorizações para isentar o Egipto e a Jordânia de sanções. Não concordaram também com a passagem do gás pela Síria, porque teriam que suspender a lei César. Se o projeto fosse viabilizado, ao invés de se pagar um bilhão de dólares por 700 megawatts, os mesmos 700 megawatts seriam obtidos por 500 milhões de dólares anuais. 

Além disso, o Irã iria fornecer 350 milhões de dólares em combustível diesel gratuitamente, o que proporcionaria 4 horas de energia elétrica diariamente. Poderia se garantir no total 10 horas de eletricidade por dia, se tivesse sido obtido petróleo do Iraque e do Irã e gás do Egito. No caso do Irã os EUA vetaram totalmente por causa das sanções. No caso do Egito os EUA afirmaram apoiar, mas não deram as garantias por escrito solicitadas por Cairo. É evidente que os EUA não se preocupam com o acesso do Líbano à energia elétrica, o mais importante são as sanções. 

No entanto, o Líbano conseguiu sua salvação ao obter do Iraque a renovação de um acordo, assinado pela primeira vez em julho de 2021 em plena crise financeira. Pelo acordo, o Iraque fornece ao governo libanês milhão de toneladas de petróleo e óleo combustível pesado em troca de serviços, incluindo cuidados de saúde para os iraquianos. O Líbano troca então o óleo combustível pesado por gasóleo compatível para utilização nas suas centrais eléctricas. O Líbano não possui as reservas cambiais necessárias para comprar combustível no exterior após o colapso bancário e monetário do país em 2019. Com a renovação do acordo, o Iraque oferecerá 3,5 milhões de toneladas de petróleo e combustível o que permitirá ampliar a oferta de eletricidade para cerca de 7h. 

Outra vitória importante do Líbano foi possibilitar a exploração de reservas de gás possuídas pelo país. Em outubro de 2022, o Líbano assinou um acordo de demarcação de fronteiras marítimas com Israel. O acordo permitiu ao Líbano obter acesso ao campo de gás offshore de Qana e finalmente demarcar as fronteiras dentro das quais é permitido extrair gás, após anos de disputa com Israel. Esse campo chegou a ser cobiçado por Israel, mas a expulsão da ocupação que exercia na região pelo Hezbollah impediu a continuidade do projeto. Embora o Hezbollah não estivesse envolvido nas negociações marítimas, continuou a atuar como avalista dos direitos do Estado libanês nas negociações. 

O imperialismo insiste na mudança de regime no Líbano

Recentemente o Governo norte-americano anunciou a intenção de auxiliar o Líbano. Os Estados Unidos redirecionaram 72 milhões de dólares para o Líbano para ajudar o governo do país a aumentar os salários de seus soldados e policiais. Washington é um doador-chave do Exército libanês e seus 80.000 membros, fornecendo mais de US $ 3 bilhões em ajuda militar desde 2006. Antes da crise, um soldado alistado ganhava o equivalente a cerca de US $ 800 por mês, mas isso caiu para pouco mais de US $ 100 devido à desvalorização da lira libanesa. O salário mensal de um oficial de alta patente agora vale cerca de US $ 250. 

Aparentemente é uma boa ajuda, mas não é verdade. Primeiro, é uma oferta única, que acrescentará US$100 ao salário dos militares e policiais por 6 meses. Além disso os fundos virão do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O anúncio da “doação” foi feito, entre outros, pelo chefe do exército libanês, general Joseph Aoun, que é o candidato do governo americano para a Presidência do Líbano.

Ocorre que a legislação libanesa impede que os chefes militares sejam candidatos nas eleições presidenciais. Como já vimos, quando das manifestações da população contra o governo, os EUA insistem em infiltrar suas ONGs e tentar a derrubada do governo. O próprio George Soros fez isso quando da crise anterior, conforme denunciou o DCO. 

A nova situação política mundial abre caminhos para que o Líbano se torne um país independente e soberano. Em breve haverá novas opções de transporte e comércio que necessariamente passarão pela Síria. O atual regime existente no Líbano é uma ditadura confessional que não atende os interesses da maioria do povo libanês. É urgente uma mudança de regime no país, mas não no sentido pretendido pelos EUA de implantação de uma ditadura militar. Uma mudança que liberte o país da opressão exercida pelo imperialismo estadunidense e europeu e possibilite o desenvolvimento com inclusão social do país, e de se relacionar soberanamente com efetivos parceiros comerciais e diplomáticos.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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