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Música brasileira

Memórias da música instrumental brasileira

A música instrumental brasileira merece ser escutada atentamente

Seria a música instrumental uma variação da música popular, portanto digna das atenções comerciais da indústria fonográfica? A música instrumental sempre foi música popular; do chorinho, bandas de pífano ou de frevo às orquestras de gafieira ou grupos de bossa nova, verifica-se a popularidade da música instrumental; antes da padronização dos gêneros musicais e dos timbres das gravações pela cultura de massas, os músicos instrumentais sempre tiveram espaço, inclusive na indústria fonográfica. Infelizmente – e essa história mereceria ser contada pormenorizadamente –, os músicos instrumentais foram reduzidos a meros acompanhantes de cantoras e cantores nem sempre a altura dos instrumentistas; nessa redução, sem expressão individual, tais músicos são proletarizados, vendendo não o trabalho musical, mas a força de trabalho de quem toca piano, baixo, bateria etc., sendo, dessa maneira, semelhantemente as engrenagens das esteiras de produção, facilmente substituíveis. Essa história triste do esvaziamento da instrumentalização da música brasileira não cabe nas dimensões desta coluna, entretanto, vale a pena lembrar, a título de exemplo, de algumas concepções artísticas.

Quando se fala em música instrumental brasileira, talvez o gênero mais representativo do Brasil seja o chorinho e artistas tais quais Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo, célebres por suas composições e, vários deles, pelo virtuosismo com que tocavam os respectivos instrumentos, especialmente os dois últimos, definidores de novas concepções para o bambolim e o cavaquinho. Conforme já discorri em outro texto no DCO, “De Pixinguinha e Jacob do Bandolim a Hamilton de Holanda”, publicado em 24 de maio de 2022, embora fortemente fundamentado na estética de seus fundadores, o chorinho sempre teve potencial para, semelhantemente ao jazz, além da depuração de seus princípios, desdobrar-se em variadas correntes. Paulinho da Viola e Severino Araújo, por exemplo, depuraram o chorinho, evitando subverter sua linguagem; diferentemente, Amilton Godoy, Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte, Wagner Tiso, Hamilton de Holanda e a banda A Cor do Som buscaram por inovações do gênero, sejam elas melódicas e harmônicas, feito os cinco primeiros, sejam timbrísticas, tocando chorinhos com instrumentação e levadas rítmicas da música pop, feito fizeram, na Cor do Som, Mu, Dadi, Armandinho, Gustavo Schroeter e Ary Dias.  

A exploração das potencialidades da nossa música instrumental, entretanto, não se restringe ao chorinho; posso lembrar de, pelo menos, cinco exemplos distintos, quer dizer, a música de gafieira, as bandas de pífano, a música de coreto, a viola caipira e a sanfona. A gafieira foi, antes de alcançar classes sociais menos desfavorecidas, baile popular bastante conhecido em meados do século XX no Brasil, em regra, animado por orquestras de pequeno a grande porte, entre elas, a Orquestra Tabajara, sob a direção do maestro Severino Araújo. Tais orquestras tocavam, evidentemente, repertório estrangeiro, contudo, devido ao talento de muitos maestros brasileiros, sempre houve bastante espaço para composições e arranjos próprios; a partir delas, desenvolveram-se repertórios singulares, por exemplo, as composições do maestro Moacir Santos nos anos 1960, época da bossa nova, a Banda Metalurgia nos anos 1980, próxima do jazz-rock, mas com música brasileira, a Banda Mantiqueira nos anos 1990, sob direção de Nailor Azevedo, o maestro Proveta.

Pensada para a dança, as bandas de gafieira notabilizaram-se pelo suingue, especializando-se em ritmos propícios para o baile, tais quais samba, bolero, salsa e jazz tradicional, diferentemente das concepções musicais de Moacir Santos, Proveta ou da Banda Metalurgia, próprias antes para audição feita atentamente que para a confraternização em danças de salão, devido, principalmente, a ênfase nas concepções musicais. Entretanto, a formação instrumental é a mesma, compondo-se da base feita por piano, baixo, guitarra, bateria e percussão, e aos naipes de trompetes, trombones e saxofones; certamente, há confluências entre os chorinhos sincopados de Severino Araújo e as “Coisas” de Moacir Santos.

Outra formação brasileira bastante original é a banda de pífano, típica do nordeste brasileiro, formada por pelo menos duas flautas de bambu e pela percussão, em geral, zabumba, triângulo, caixa e pratos. Essa formação é clássica, há bonecos de barros dela, no estilo mestre Vitalino, espalhados pelas feiras de artesanato; o artesanato na fabricação de pífanos de bambu é reconhecido entre os brasileiros; há concursos entre as melhores bandas, cuja música tem características melódicas e rítmicas singulares, devidamente depuradas nessas disputas. Originalmente, a música das bandas de pífano não se destina somente a audição, mas também a dança, animando bailes populares; do mesmo modo que as bandas de coreto, formadas por metais e percussão. Essas últimas, por não dependerem do artesanato, tais quais as bandas de pífano, demandam músicos com formação menos específica e mais formal, pois lidam com instrumentos de metal e não, de bambu, portanto, de fabricação e manutenção detalhadas, cujas afinações e harmonização em conjunto precisam ser ajustadas com cuidado.

Tanto as bandas de pífano quanto as de coreto inspiraram músicos contemporâneos; Hermeto Pascoal, Jovino dos Santos Neto e Egberto Gismonti compuseram para pífano; Hermeto tem várias incursões na música de coreto; nesse campo, porém, não se pode esquecer de Carlos Malta, quem deu novas dimensões a ambas, levando adiante duas bandas, a Pife Moderno e Tudo Coreto.

Além das formações necessariamente grupais das bandas, sejam elas de gafieira, pífano ou coreto, há instrumentos, caso não de origem brasileira, tornados, pelo uso e virtuosismo dos músicos e compositores, característicos do Brasil, tais quais a viola caipira e a sanfona. A primeira, típica das tradicionais duplas caipiras, enquanto o violão faz a base harmônica, encaminha os ponteios, contraponteando a linha melódica da canção. Atualmente, há escolas dedicadas tanto à fabricação artesanal do instrumento quanto ao ensino; ao lado dos compositores próximos da tradição, feito Tião Carreiro e Helena Meirelles, há inovadores, por exemplo, Paulo Freire, e músicos de vanguarda, feito Egberto Gismonti e Heraldo do Monte.

Quanto à sanfona, os exemplos são muitos, de Rubens Antonio de Silva, o popular Caçulinha, a Severino Dias de Oliveira, o Sivuca, e Toninho Ferragutti, a sanfona vem sendo utilizada na composição dos trios de forró, ao lado de zabumba e triângulo, nos conjuntos regionais de chorinho, na bossa-nova e no rock brasileiro.

Por fim, algumas palavras a respeito da vanguarda paulistana dos anos 1980. Embora o movimento tenha se notabilizado com Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, aquela vanguarda foi levada adiante por músicos instrumentais, principalmente pelos grupos Um e Divina Increnca, aqueles a gravarem os primeiros álbuns independentes, dando continuidade às inovações nascidas na música instrumental da bossa-nova, quando instrumentos e formações do jazz foram utilizados para fazer música brasileira. No texto “Lembranças da música independente feita no Brasil”, publicado no DCO no dia primeiro de maio de 2022, há longa lista de álbuns e músicos daquela geração para confirmar a predominância da música instrumental na vanguarda paulistana, que não merece estar restrita a canções, na maioria das vezes aquém da imaginação e talento do músico instrumental brasileiro.

Em seguida, deixo os endereços dos dois textos citados na coluna de hoje:

              (1) “De Pixinguinha e Jacob do Bandolim a Hamilton de Holanda”

https://www.causaoperaria.org.br/rede/dco/opiniao/colunistas/de-pixinguinha-e-jacob-do-bandolim-a-hamilton-de-holanda/

              (2) “Lembranças da música independente feita no Brasil”

https://www.causaoperaria.org.br/rede/dco/opiniao/colunistas/lembrancas-da-musica-independente-feita-no-brasil/

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