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Ric Jones

Médico homeopata e obstetra. Escritor, palestrante da temática da Humanização do Nascimento no Brasil e no exterior.

Coluna

Parto e Revolução

A morte do velho parto e o nascimento do novo

 

Humanização do nascimento, enquanto ciência, não pode tolerar certas falácias. Muito já foi dito sobre o parto e suas implicações psicológicas, afetivas, morais, espirituais, fisiológicas e sociais; agora cabe a nós agora mudá-lo, transformá-lo. As revoluções no campo do conhecimento humano se sucedem, atropelam umas às outras. O que antes era o novo, hoje já é o antigo, e resta-nos incorporar a metamorfose de ideias e projetos a nos oferecer o ânimo da mutação. O parto, como o conhecemos, é fruto de uma revolução tecnológica que, iniciando-se com a anestesia, na memorável apresentação de uso do éter em 1846, com o cirurgião Warren e o anestesista Thomas Morton, culminou com a realização da cesariana em Julia Covallina, pelo cirurgião Edoardo Porro em Pávia, na Itália, já nos estertores do século XIX. Esta cirurgia, criada com o intuito de salvar vidas condenadas pelos efeitos dramáticos do raquitismo no trajeto pélvico, conduziu-nos à suprema interferência no milenar mecanismo do parto, garantindo-nos, com razoável segurança, a entrada no claustro escuro onde dormita o amnionauta. Depois de quase um século, os anticoncepcionais desvincularam o sexo da gestação e permitiram que as mulheres deixassem de ser prisioneiras da gestação; seria possível retirar do sexo todos os prazeres sem o temor de uma gestação indesejada. Tamanha a euforia com estas conquistas que por um tempo imaginamos que o domínio completo sobre os mistérios do nascer havia sido estabelecido. Entretanto, tamanha interferência nos ciclos que governam a reprodução e a vida não poderia ocorrer sem que, de alguma forma, houvesse uma ruptura com os delicados liames que nos conectam com a natureza.

As cesarianas, assim como as analgesias de parto, tornaram-se mais do que simples e corriqueiras; sua aplicação no mundo ocidental tem aspectos de epidemia, tamanha a sua abrangência. No Brasil, a taxa de cesarianas está estacionada nos 57%, um número assustador se imaginarmos que a OMS estabeleceu como 15% o percentual máximo que pode oferecer vantagens. Multiplicamos por 4 este valor, e por certo que existem consequências nefastas por esta medida. Bem o sabemos o quanto as cesarianas, ao tornar previsível um evento dominado pela imprevisibilidade, beneficiam os médicos e as instituições, e aqui está uma boa razão para os abusos que testemunhamos. Além disso, as cesarianas multiplicam os riscos, tanto para as mães quanto para os bebês. As analgesias de parto também são extremamente prevalentes nas salas de parto, diminuindo a propriocepção materna e dificultando as mudanças posturais ativas da mãe na adaptação do seu bebê ao canal de parto. Hoje em dia apenas 5% das mulheres brasileiras tem um parto sem intervenções médicas potencialmente perigosas para a mãe e seu bebê. Além disso, existem repercussões de caráter emocional, psicológico e social das cesarianas, que afetam o desenvolvimento do apego da recém-mãe com seu bebê. O caminho das intervenções e o parto na perspectiva médica mostravam suas falhas e seus senões.

Por esta razão, a partir do final dos anos 70 do século passado surgiu um movimento de usuárias e profissionais da saúde com o objetivo de “humanizar o nascimento”, na medida que a postura meramente objetal das pacientes – como é a característica daqueles que se submetem à ação médica – não é aceitável para uma mulher saudável que está diante de um evento natural do seu corpo, sobre o qual não cabe nenhuma intervenção sem justificativa. Passou-se a admitir – de novo – que parto faz parte da vida sexual de uma mulher, que deve ser governado por estes pressupostos, e que o nascimento de uma criança é algo que ela faz… e não algo que fazem por ela.

Iniciou-se, então, um movimento de caráter internacional de questionamento sobre as múltiplas e exageradas intervenções sobre as mulheres no momento do parto, assim como no pré-natal e nas semanas que se seguem ao nascimento. A ideia central que impregnou esta geração de pensadores sobre o nascimento foi a “desmedicalização” do nascimento, o respeito à fisiologia, o uso consciencioso e restrito das intervenções, o entendimento do parto como um processo interdisciplinar e, acima de tudo, a garantia do protagonismo à mulher e à família, recuperando a centralidade feminina e familiar do nascimento humano.

Muito já se avançou no debate sobre a necessária retomada de um percurso de atenção ao parto que respeite a mulher e sua fisiologia. Muitas publicações, estudos, análises, pesquisas e literatura acadêmica contribuiu para esta lenta mudança. Todavia, ainda há um caminho longo a percorrer, porque as modificações na assistência ao parto não carecem de retoques ou de revisões de protocolos; é necessário o que se faça uma revolução, na medida em que estas transformações estão relacionadas ao poder sobre os corpos, mantido sob a guarda dos profissionais da medicina. Como diria Gramsci, se fosse parteiro: “o parto na lógica da intervenção já morreu, mas o parto na perspectiva do sujeito tarda a nascer. Neste lapso temporal ainda testemunhamos a barbárie da violência contra as gestantes”. Humanização do nascimento não é uma ideologia que se encerra no mundo das ideias, mas uma filosofia da prática cotidiana. A prática sem arcabouço teórico é perigosa e caótica; porém a teoria sem a prática é vazia e inútil, servindo apenas para devaneios filosóficos e especulativos.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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