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Ric Jones

Médico homeopata e obstetra. Escritor, palestrante da temática da Humanização do Nascimento no Brasil e no exterior.

Coluna

Os burgueses

A burguesia e suas bolhas

Tenho um amigo que por muitos anos se dedicou ao trabalho com os necessitados. Pertencia a uma ONG que constantemente precisava de dinheiro para bancar alimentação e estudos para crianças em situação de rua. Por essa atividade, tornou-se um “pedinchão” profissional: procurava o departamento social de empresas para que fizessem doações à sua causa. Passou anos a fio nessa atividade. Certa feita foi levado a conversar com a mais rica empresa do Estado, que costumeiramente auxiliava a sua e outras instituições de suporte social. Nesta circunstância foi convidado a falar com a esposa do presidente em sua própria casa, pois que ela coordenava o setor de assistência social, como é comum ocorrer com as “primeiras damas” destas megaempresas. Esse encontro com um membro da burguesia o marcou profundamente.

Meu amigo descreveu os pormenores do encontro, assim como da casa, com detalhes indispensáveis: os seguranças, como foi recebido pelos criados da casa, os móveis, o interior da mansão, a espera pela chegada da “madame” e a breve conversa que tiveram, onde em poucas palavras ele descreveu o projeto da sua instituição. Saiu do encontro com a promessa de que lhe seria dado pelo menos uma parte dos recursos que precisava. O relato do encontro nos seus aspectos pessoais também é bem esclarecedor. Disse-me este amigo que, apesar da riqueza e da opulência, os anfitriões do breve encontro eram “pessoas muito simples”, “cordiais”, “educadas” e que ouviram atentamente suas explicações sobre os planos da instituição e suas necessidades financeiras. “Eles são gente como nós”, me disse ele, com um sorriso.

“Não há dúvida que somos feitos da mesma matéria frágil que os constitui”, pensei eu. Entretanto, em uma sociedade estratificada em classes, estamos inexoravelmente distantes e, mesmo que de forma artificial, habitamos mundos bastante diferentes. E para entender o universo sofisticado onde transitam e os valores que mobilizam estas pessoas é importante armar-se com a devida consciência de classe.

Esse encanto pelo glamour dos ricos e a percepção enganosa de sua “simplicidade” me fez lembrar outra história. Certa feita, uma amiga, que também é uma famosa doula, foi convidada a atender uma paciente do outro lado do mundo – literalmente. Para isso foi buscada de avião duas semanas antes do parto e ficou hospedada aguardando o trabalho de parto em um dos inúmeros aposentos da mansão da família mais rica daquele país – uma riqueza vinda do império de comunicação que seu pai havia criado. Sua descrição do jovem casal de herdeiros foi muito semelhante à do meu amigo. Para ambos, o contato com a aristocracia, mesmo que em níveis diferentes, foi uma experiência marcante, e para eles os ricos eram essencialmente iguais a nós: pessoas simples e humildes quando despidas de suas capas profissionais e quando deixavam de lado sua persona social. “They are simple people, just like us”, disse ela.

Contrariamente ao que dizia Hemingway, que afirmava que “os ricos são iguais a nós, apenas com muito mais dinheiro”, eu prefiro entender esse fenômeno da mesma forma como o jornalista Chris Hedges o percebe quando descreve a patologia dos ricos. Nascido de uma família de classe média baixa, sendo seu pai um pastor luterano e sua mãe uma professora, Chris Hedges foi agraciado com uma bolsa de estudos em uma escola frequentada apenas pelos extremamente ricos, local onde estudam apenas os filhos de bilionários dos Estados Unidos. Nesta condição de “penetra” em um mundo ao qual não pertencia, ou como um escafandrista que, sendo do mundo de ar explora um universo aquático, ele foi capaz de observar com olhar crítico os efeitos que a riqueza obscena – e o poder que dela deriva – produz nas pessoas, em especial nas crianças.

Sua experiência o fez entender esta concentração de riqueza como um tumor, uma doença corrosiva capaz de transformar tudo – e todos – em mercadoria, bens de consumo e utensílios precificados, os quais podem ser usados e descartados. O fato de viverem em bolhas onde as únicas pessoas do povo com quem convivem são criados e serviçais os faz acreditar – mesmo que racionalmente digam o contrário – que os outros, os que vivem fora da bolha, existem somente para servi-los. Sentem-se especiais, ungidos, eleitos de uma casta diferenciada. Como duvidar disso se todos ao seu redor se comportam como que confirmando essa percepção? Para Chris Hedges o dinheiro em quantidades praticamente infinitas destrói a humanidade que existe em nós, transformando-nos em máquinas de consumo. Sem a interdição do mundo real, como escapar da loucura?

Meus amigos, em seu breve contato com a vida dos aristocratas, deixaram-se seduzir pela aparente simplicidade de suas relações pessoais, sem se aperceber que se trata de uma máscara, uma estratégia de marketing. Aliás, a própria ação de “caridade” cumpre essa função: oferecer uma face humana à perversidade da sociedade de classes, e um alívio para culpas inconfessas. No íntimo existe na alma de todo bilionário a noção de que sua riqueza é imoral e que só ocorre pela expropriação do trabalho alheio. Muita gente se sacrifica para que sua opulência possa ser desfrutada e ele mesmo não precise trabalhar; seu dinheiro trabalha por si.

O mais chocante, para mim, nestes relatos foi a constatação de que os meus amigos realmente acreditavam estar na presença de pessoas “especiais”, devotando a eles a mesma reverência de um aldeão quando encontrava alguém da nobreza. Um encantamento que surge da crença arraigada na sociedade de classes, que nos faz crer que somos intrinsecamente diferentes em nossa essência, e é esta essência o que nos oferece valor e mérito diferenciados. Uma sociedade verdadeiramente civilizada jamais permitiria que seres humanos fossem colocados em prateleiras diferentes no armário da vida. O deslumbramento dos meus amigos sinaliza que ainda estamos distantes dessa utopia.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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