O artigo Aliança de Lula é com barriga cheia do pobre, mesma que deu vitória a Obrador e salva RS, publicado recentemente pelo Brasil 247, sintetiza a posição da esquerda em dois temas muito importantes para a situação política atual. Assinado por César Fonseca, o texto faz uma avaliação exageradamente positiva da vitória de Claudia Sheinbaum, sucessora de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) no México, e do atual governo Lula, expressando a dificuldade da esquerda brasileira em assimilar o que está em jogo hoje na América Latina.
Uma primeira ideia que deve ser debatida é a de que a vitória de Sheinbaum tenha representado uma grande derrota para a direita. Essa ideia está presente não apenas no artigo de Fonseca, mas está sendo, inclusive, propagada pela imprensa imperialista, a exemplo do jornal espanhol El País, que afirmou que a sucessora de Obrador teria contribuído para “frear a extrema direita” na região. Trata-se, contudo, de uma tese falsa.
Pode-se dizer que a vitória eleitoral de Lula em 2022 representou, de fato, uma derrota importante da direita no Brasil e na América Latina. Afinal, Lula é uma liderança operária, que se tornou um preso político do imperialismo, o que demonstra que a burguesia não queria, de forma alguma, que ele governasse na atual etapa da luta de classes. A vitória de Lula foi a derrota da Lava Jato, da imprensa burguesa e do conjunto da burguesia, mesmo que os ataques ao petista não fossem tão intensos em 2022 quanto eram em 2018. Lula venceu uma eleição profundamente polarizada, na qual setores da burguesia se cartelizaram em torno de Jair Bolsonaro (PL) e tentaram evitar a vitória de Lula, chegando a coagir trabalhadores nas fábricas e a mobilizar o aparato do Estado para impedir que eleitores de regiões pobres pudessem votar.
O mesmo já não pode ser dito sobre o México. Sheinbaum venceu as eleições com uma tranquilidade impressionante. Ela teve mais que o dobro dos votos da segunda colocada e ainda conseguiu a maioria absoluta no parlamento. Nenhum escândalo de corrupção veio à tona contra sua figura, a grande imprensa não procurou explorar nenhuma crise enquanto era governadora da Cidade do México. Esses dados já mostram que o processo eleitoral não foi como no Brasil, mas sim uma eleição insossa, o que demonstra que o imperialismo não vê muito a perder com a vitória de Sheinbaum.
Fonseca poderia argumentar que na Rússia, por exemplo, a vitória foi esmagadora. Isso, no entanto, aconteceu simplesmente porque o imperialismo não teve força para organizar uma oposição forte ao governo de Vladimir Putin dentro do país. No mundo inteiro, a posição do imperialismo foi a de acusar o regime russo de todos os crimes possíveis, contagiando, inclusive, um setor da esquerda internacional. Nada parecido aconteceu com Sheinbaum.
O que aconteceu, na verdade, foi que o imperialismo, diante da falência do sistema político mexicano, que, até o início dos anos 2000, girava exclusivamente em torno do Partido Revolucionário Institucional (PRI), decidiu entrar em um acordo com uma figura que, ainda que se apresente como esquerdista, é fortemente influenciada pelos grandes monopólios internacionais. Tanto é assim que Sheinbaum já ocupou cargos na Organização das Nações Unidas (ONU) e já foi agraciada com um Prêmio Nobel.
Por trás da confusão de Fonseca, está a ideia de que é possível derrotar o imperialismo sem que haja um enfrentamento. Está a ideia de que o imperialismo, por ter uma política cada dia mais popular, irá abrir mão de seu poder e permitir que a esquerda governe. Isso simplesmente não irá acontecer.
Fonseca, então, se baseia em sua análise do caso mexicano para dizer que AMLO, ao ter conseguido emplacar uma sucessora do mesmo partido (Morena) e que seria uma pessoa de sua confiança, teria descoberto uma espécie de receita para barrar o neoliberalismo e garantir o domínio da esquerda. Diz ele:
“O presidente Lula antecipou com sua política social a mesma jogada que tornou vitorioso o presidente do México, López Obrador, adotou, alcançando triunfo popular espetacular.
O neoliberalismo opositor não conseguiu construir discurso alternativo ao discurso social, para conquistar as massas.”
É natural que um governo que promova algum tipo de assistência social, valendo-se do fato de estar “com a máquina na mão”, angarie mais popularidade que candidatos empresários que proponham uma política de austeridade fiscal. Tanto é assim que Jair Bolsonaro, mesmo sendo um homem dos bancos, que colocou Paulo Guedes como seu ministro da Economia, distribuiu bilhões de reais à população por meio de programas sociais, na tentativa de fazer com que isso lhe rendesse um resultado eleitoral.
O erro está, no entanto, em considerar que isso tenha sido decisivo para a vitória de AMLO. O que mais foi decisivo em sua vitória não foi a sua política social de baixa intensidade, que, inclusive, é vista como uma necessidade por parte da burguesia, para evitar uma explosão social. Mas sim a sua política em questões fundamentais para a dominação imperialista no país, como é o caso da política de total repressão ao “crime organizado” e de sua política em relação à China. É por ter mantido os aspectos centrais da política imperialista no México, por mostrar que não é uma ameaça ao imperialismo que AMLO conseguiu eleger sua sucessora com tanta facilidade.
Um artigo do insuspeito Valor Econômico, publicado em 2019, diz que:
“A desigualdade de renda no México é alta e baixou muito pouco na última década. No entanto, nosso estudo revelou que os gastos sociais, especificamente as transferências de renda do governo, foram eficazes na diminuição da pobreza e na contenção da desigualdade de renda durante esse período. Segundo nossas constatações, as transferências monetárias do governo foram responsáveis pela metade da redução total da pobreza e por 16% da redução da desigualdade observada de 2004 a 2016” (Como os gastos sociais do México reduziram a pobreza e a desigualdade de renda. Frederic Lambert, Valor Econômico, 8/10/2019).
A citação mostra que a mesma imprensa que havia comemorado a prisão de Lula e que defendeu o teto de gastos do governo de Michel Temer não só reconhecia que era necessário aumentar os “gastos sociais”, como também demonstrou que a política de assistência social já vinha muito antes do governo de AMLO, visto que era uma necessidade do imperialismo para conter a crise social. Além disso, o acordo de AMLO não é apenas com o imperialismo em si, mas também com o próprio exército do país, uma vez que admitiu vários assessores oriundos das forças armadas, entregou a gestão da infraestrutura aeroportuária mexicana aos militares e colocou nas mãos do Exército a operação do importante projeto Trem Maia.
A análise de César Fonseca, no entanto, não leva em consideração apenas o governo de ALMO. Ele considera que os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) seriam parte do mesmo fenômeno. Diz ele:
“Lula, antes de Obrador, praticava a fórmula de 3 refeições diárias para os mais pobres poderem sobreviver com dignidade, com a garantia do Bolsa Família e programas sociais distribuidores de renda. Obrador fez uma variação: dava dinheiro na conta dos pobres, livrando-os da burocracia estatal, que beneficia a burguesia financeira que controla o Estado. Nesse sentido, o presidente mexicano foi mais ousado e pragmático. Venceu os trâmites burocráticos para liberação de habilitações aos programas sociais, passando por cima deles com o dinheiro estatal disponível na conta dos socialmente excluídos.”
Se a política social não é suficiente para derrotar de fato o imperialismo, como, então, Lula teria conseguido se reeleger e ainda eleger sua sucessora por duas vezes, sem que isso tivesse causado uma enorme crise? E por que Dilma Rousseff, cujo terceiro governo conseguiu implementar medidas mais profundas, quase perdeu a eleição de 2014 e foi derrubada por um golpe de Estado em 2016?
A resposta é simples: porque o problema central não é a capacidade de realizar alguns programas sociais, mas sim as relações entre as classes sociais.
Os governos do PT foram uma grande exceção ao regime político. Eles só foram possíveis por tanto tempo e com uma política tão oposta ao que hoje é a política de Javier Milei, na Argentina, porque as circunstâncias eram outras. Em primeiro lugar, a crise social, assim como visto no caso do México, era muito profunda, ao ponto de chegar a morrer 300 crianças por dia por inanição. Em segundo lugar, essa crise estava levando a mobilizações insurrecionais em toda a região, como na Bolívia, na Venezuela e na Argentina. Esses dois problemas levaram a burguesia a mudar o sistema político para que as massas fossem acalmadas com alguma política social. Em terceiro lugar, a distribuição de renda só foi possível no Brasil e em outros países latino-americanos porque havia uma onda favorável para a venda de commodities, o que possibilitou um desenvolvimento econômico.
Nenhuma das condições estão presentes hoje. Embora a crise social leve a mobilizações, as duas revoltas com características mais abertamente insurrecionais que aconteceram recentemente foram derrotadas. No Equador, assumiu um presidente tão neoliberal quanto Lenín Moreno. No Chile, assumiu um neoliberal disfarçado de esquerdista que não apenas manteve a constituição pinochetista, como preparou o terreno para uma provável vitória da extrema direita. Por outro lado, o imperialismo ingressou em uma etapa de promover uma política neoliberal muito agressiva, que seja capaz de bancar suas aventuras militares que aumentam a cada dia.
A única maneira de derrotar ou mesmo conter o imperialismo e a sua política neoliberal será, portanto, por meio do enfrentamento. Será preciso um processo social semelhante ao que levou Hugo Chávez ao poder para que a esquerda efetivamente consiga governar na América Latina. Do contrário, nada de significativo acontecerá. E a tendência é que, na medida em que a esquerda fracasse em realizar reformas importantes, o seu apoio caia e o imperialismo procure remover esses governos.
César Fonseca, no entanto, se ilude e diz coisas como “Lula agiu como formiguinha: reservou no orçamento do seu primeiro governo recursos suficientes para investir nos programas sociais e dinamizar o consumo interno”, “PIB positivo para elevar perspectivas políticas e eleitorais que sinalizariam força na disputa eleitoral em 2024 e 2026”, “desespero da direita e ultradireita” etc. Isto é, como se progressivamente o governo Lula estivesse ganhando apoio popular e minando a direita e a extrema direita como forças sociais. Mas é exatamente o oposto que está acontecendo.
Todas as pesquisas têm apontado uma queda na popularidade de Lula. Ao mesmo tempo, a extrema direita cresce em sua capacidade de implodir as propostas do governo no Congresso Nacional e em suas projeções para as eleições municipais. Não basta simplesmente “fazer alguma coisa”. Medidas de pouco impacto não apenas não são suficientes para aumentar o apoio da população, como fazem com que a insatisfação social cresça. Por mais que Lula seja sabotado pela direita, os resultados econômicos pouco efetivos recairão, sobretudo, em suas costas.
O problema central é a correlação de força, como dissemos. É preciso investir na mobilização. A burguesia não está disposta nem mesmo a permitir que o governo estoure o orçamento para reconstruir o Rio Grande do Sul. No entanto, diante do fato atípico de que a esquerda tem o governo nas mãos, é preciso, também, formular uma política para o governo, que inclusive favoreça a mobilização e o enfrentamento.
Fica, portanto, a questão: que tipo de política Lula deveria ter para a atual etapa? Não bastará fazer “mais do mesmo”. Não bastará cumprir com uma lista de programas sociais, por mais que eles sirvam para amenizar a crise social. O enfrentamento com a direita que é necessário nos dias de hoje não virá, como crê Fonseca, por causa do discurso “ambiental” de Lula. E é justamente aqui que está a sua maior diferença para AMLO.
Ao contrário do político mexicano, que é oriundo do próprio PRI, isto é, do próprio regime político, Lula é diretamente vinculado às massas operárias e populares. Neste sentido, ele é muito mais vulnerável às pressões dos trabalhadores para que cumpra com um programa que satisfaça minimamente as suas necessidades. Esse programa, por sua vez, é impossível de ser cumprido com acenos sociais. Para ser cumprido, ele precisa realizar reformas econômicas profundas que possibilitem o desenvolvimento do País.
Distribuição de renda, que é o que fez AMLO e o que fez Lula em seus primeiros mandatos, é, fundamentalmente, amenizar o sofrimento da população nos marcos da política neoliberal. Diante da destruição do País, contudo, é preciso ir muito além. É preciso reverter a desindustrialização, é preciso combater duramente o desemprego, é preciso obter uma independência tal das pressões econômicas do imperialismo que permita ao governo ser independente no que diz respeito à sua política econômica.
A única forma de fazer isso é tomando medidas como a estatização da Petrobrás, a reestatização da Eletrobrás, o fim do Banco Central “independente”, o fim dos impostos sobre o consumo, o estabelecimento de um salário mínimo vital, o desmantelamento do aparato repressivo e a redução da jornada de trabalho. Sem medidas como essa, não haverá mudanças significativas na economia. E, diferentemente do que ocorreu nos primeiros mandatos petistas, a burguesia não assistirá de braços cruzados a um lento crescimento econômico operado por um governo que, para ela, não corresponde a seus atuais interesses.