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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

O formigueiro, de Ferreira Gullar

Poesia social e poesia experimental

Quem gosta de música instrumental brasileira, certamente, conhece Egberto Gismonti. Certa tarde, nos anos de 1980, escutando uma entrevista feita com ele, fiquei sabendo de duas gravações suas acompanhando escritores da literatura brasileira, isto é, o romancista Jorge Amado (1980) e o poeta Ferreira Gullar (1979); pouco depois, ele gravou com João Cabral de Melo Neto (1984).

Jorge Amado e João Cabral de Melo Neto eu já conhecia das aulas de literatura durante o ensino médio, mas nada sabia sobre Ferreira Gullar. Quando perguntei para a professora a respeito do poeta, ela respondeu que se evitava falar de Ferreira Gullar na escola porque ele discutia, justamente, a liberdade. Vale lembrar, isso foi no início da década de 1980; eram os tempos da abertura política, mas ainda havia ditadura militar; mesmo assim, a professora me deixou ler, na sala de aula, o poema “Dentro da noite veloz”, em que Gullar narra o assassinato do revolucionário Ernesto Che Guevara, outra personagem proibida nos livros didáticos.

No álbum, enquanto Egberto Gismonti improvisa, Ferreira Gullar declama; e quem já ouviu Ferreira Gullar declamando sabe o quanto ele fala bem, compassadamente, pronunciando todos as sílabas com clareza. Entre os poemas, Gullar selecionara “Dentro da noite veloz”; motivado pelas gravações, acabei adquirindo sua obra completa até então – 1950 a 1980 –, editada pela Civilização Brasileira. Este é o quarto canto de “Dentro da noite veloz”, justamente quando se narra a morte do guerrilheiro:

“Correm as águas do Yuro, o tiroteio agora / é mais intenso, o inimigo avança / e fecha o cerco. / Os guerrilheiros / em grupos pequenos divididos / aguentam a luta, protegem a retirada / dos companheiros feridos. / No alto, / grandes massas de nuvens se deslocam lentamente / sobrevoando países / em direção ao Pacífico, de cabeleira azul. / Uma greve em Santiago. Chove / na Jamaica. Em Buenos Aires há sol / nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe. / Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima / de Montevidéu. À beira da estrada / muge um boi da Swift. A Bolsa / no Rio fecha em alta / ou baixa. / Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Ñato / castigam o avanço dos rangers. / Urbano tomba, Eustáquio, / Che Guevara sustenta / o fogo, uma rajada o atinge, atira ainda, solve-se-lhe / o joelho, no espanto / os companheiros voltam / para apanhá-lo. É tarde. Fogem. / A noite veloz se fecha sobre o rosto dos mortos.”

Sobrevoando a América Latina feito repórter, fornecendo, inclusive, notícia sobre a meteorologia, o poeta revela a luta de classes por meio de generais fascistas e guerrilhas revolucionárias, denunciando o fetiche das mercadorias a movimentar o mundo capitalista por meio de multinacionais e bolsas de valores.  Revestido pela poesia, o tema político surge epicamente, com Che Guevara transformando-se em mito por meio da palavra.

Em 2015, visitando livrarias, tive o prazer de encontrar “O Formigueiro”, um dos poucos poemas concretos de Ferreira Gullar. Trata-se de poema social, a temática é política; a forma poética, porém, é completamente distinta de poemas feito “Dentro da noite veloz”. Em linhas gerais, o poema todo é desenvolvido por meio da frase “a formiga trabalha na treva a terra cega traça o mapa do ouro maldita urbe”; partindo-se do substantivo “a formiga”, as letras formadoras da frase espalham-se no decurso de 11 páginas, relacionando-se com outras letras, para, na página 12, formar-se a frase principal.

Em seguida, até o final do texto, isto é, nas demais 38 páginas, Gullar mostra outras palavras formando-se a partir do mesmo campo tipográfico, com a letra inicial em maiúscula a fim de indicar o vocábulo determinado – no final da coluna, há exemplos com as palavras “folha” e “morrer” –, encaminhado as seguintes delas:

“Come / Bicho / Morto / Gente / Morta / Milho / Farinha / Açúcar / Falha / Planta / Carrega / Palha / Folha / Falha Falhada / Capim / Vacila / Cai / Briga Mata / Morre / a Formiga / Fabrica Urbe / o Formigueiro / Fungo / Alfabeto / Álcool / Fogo / Povo / Voo / a Formicida / Pânico / a Metrópole / Tribo / Rito / Riu / Ur”

A publicação respeitou a arte gráfica do poema: o livro tem formato 21×28; o poema está impresso apenas nas páginas pares, com a mancha no alto da página; enquanto objeto, é um belo livro para se ter nas mãos.

Não analisarei o poema exaustivamente, porém, vale a pena comentar algumas leituras sugeridas e explicadas pelo próprio poeta, outras, disseminados pela crítica e tradição concretistas. Ao traçar as devidas diferenças entre caligramas e poemas concretos, a crítica concretista, reiteradamente, cita “O Formigueiro”; em linhas gerais, os caligramas são desenhos feitos com letras, enquanto, na poesia concreta, as cores, as formas e as posições das letras devem formar um todo coerente com a significação linguística do poema. Dessa maneira, no poema de Gullar, as letras não dão forma a caligramas, ou seja, não correspondem a figuras de formigas, mas se dispõem nas páginas semelhantemente a formigas, no formigueiro.

Além disso, não são simuladas apenas formigas com as letras, pois elas dão novos significados à frase-poema “a formiga trabalha na treva a terra cega traça o mapa do ouro maldita urbe”, gerando-se novos vocábulos; nessa expansão, o poema parece, a partir da estrutura tipográfica, “falar” com voz própria. Esse processo pode estimular, por parte do leitor, a busca por outras palavras, além das já evocadas pelo poeta-poema; eu encontrei algumas, tais quais Arpão, Fumo, Farpa, Talho.

Com a frase principal e sua disposição nas páginas do livro, não se define somente um campo tipográfico, define-se um campo semântico, em função do qual as palavras derivadas dele ganham sentido. As palavras não são inocentes, elas tematizam os discursos responsáveis por suas significações; Ferreira Gullar se vale disso ao propor, entre outras, as palavras Povo, Formiga, Metrópole. Nesse processo poético, as formigas, em seu trabalho, podem ser lidas enquanto alegorias das muitas formas de alienação social, pois trabalham nas trevas, traçando “o mapa do ouro maldita urbe”.

Por fim, um último comentário. No prefácio da nova edição de “O Formigueiro”, Ferreira Gullar justifica a publicação do poema com estas afirmações: “Em que pese a pretensão vanguardista daqueles anos e os maus resultados que esse tipo de poesia obteve, precisamente por sua frieza e cerebralismo, “O formigueiro”, com sua forma engenhosa, busca na verdade resgatar a simplicidade do discurso poético”.

Não creio haver pretensões vanguardistas nas décadas de 50 e 60 do século passado; os resultados da poesia concreta estão longe de serem ruins, feito insiste Ferreira Gullar; para muitos, a poesia concreta é divisor de águas na Literatura Brasileira. Também não concordo que a utilização do cérebro para fazer poesia seja problema nem disso decorrer, necessariamente, frieza. Artistas da importância de Bach, Schöenberg, Stockhausen, Da Vinci, Mondrian, Vasarely, Dante, E M de Melo e Castro, Pedro Xisto são artistas cerebrais; se, segundo Fernando Pessoa, o poeta finge a dor que deveras sente, não há modo de saber o quanto a poesia sentimental é feita antes com o cérebro para, depois, parecer “coisas” do coração.

Para concluir, embora Ferreira Gullar busque afastar “O formigueiro” da poesia concreta, a engenhosidade do poema está, justamente, nele ser poema concreto; contrariamente ao dito por Gullar, o poema nada tem de simples, necessitando de, pelo menos, uma chave de leitura, fornecida no prefácio pelo próprio poeta.

 

 

 

 

 

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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