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Carla Dórea Bartz

Jornalista, com 30 anos de experiência (boa parte deles em comunicação corporativa). Graduada em Letras e doutora pela USP. Filiou-se ao PCO em 2022.

Coluna

Dias Perfeitos, de Win Wenders

A repetição é um traço da contemporaneidade e marca a ausência de memória e de futuro

O novo filme do diretor alemão Win Wenders, Dias Perfeitos (Perfect Days, 2023), é um longa-metragem com a estranha missão de encontrar encantamento em um mundo em ruínas.

A história está centrada na vida de Hirayama (Koji Yakusho), um faxineiro de banheiros públicos em Tóquio. Um homem de meia-idade, solitário, que vive uma rotina bastante estruturada entre o trabalho e o pouco tempo livre.

Engana-se, no entanto, quem pensa que o filme mostra a existência limitada de um trabalhador miserável. Ao contrário, o personagem parece muito satisfeito com seu cotidiano. O trabalho nos banheiros não parece incomodá-lo. Ao contrário, ele mostra-se bastante dedicado, no limite da perfeição.

Na casa simples, cheia de tatâmis e portas de correr, dedica-se à leitura, à fotografia e ao cultivo de pequenas mudas de árvores.

Ao longo do filme, descobrimos que Hirayama vive uma escolha pessoal, ou seja, ele não é um trabalhador por necessidade.

Não sabemos ao certo os motivos, mas fica claro que algo grave aconteceu entre ele e a família, aparentemente muito rica, que justifica sua decisão individual.

Trata-se de uma espécie de renúncia quase sacerdotal. Lembra a de um monge budista ou de um padre católico em um mosteiro.

E, de fato, parece ser isso que Wenders tenta representar: a felicidade das coisas pequenas, como está na moda. A ideia do “minimalismo”, “das casinhas pequenas ou tiny houses”, do “faça você mesmo ou do it yourself”, da “vida simples”, que permeia o universo idealizado de certos setores da pequena-burguesia urbana e ocidental.

São apenas soluções que refletem o tamanho do estrago das crises econômicas das últimas décadas, especialmente a de 2008, que ainda não passou.

Por isso, apesar de Tóquio ser o cenário e os aspectos da cultura japonesa, o filme é, na verdade, bastante mediano e feito para um público europeu e norte-americano bastante limitado.

Há uma mensagem edificante: não importa o que você faz ou o que você tem, o mais importante é “quem você é” e que é possível ser feliz se você tiver uma vida plena. É como um livro de autoajuda na prateleira de uma livraria massificada.

Refletindo sobre seu próprio filme, encontrei essas palavras de Wenders: “Para mim, uma das grandes condições da paz é estar satisfeito com o que se tem. Um dos grandes problemas da paz é que nossos países e economias são viciados em crescimento. O crescimento gera guerras. O crescimento gera desigualdade. O crescimento cria aqueles que não podem crescer, em oposição àqueles que sempre querem continuar a crescer. O crescimento é um enorme obstáculo à paz. Nossos economistas não gostam de ouvir isso. Eles não querem ouvir que não devemos ficar felizes com o que temos e tentar compartilhar isso em vez de crescer mais. Crescer mais só é possível às custas de outros que crescerão menos, e esse é o motivo da maioria das guerras. Hirayama é um verdadeiro pacificador. Ele é meu primeiro herói da paz de verdade… bem, exceto pelos anjos em Asas do desejo.”

Se isso que ele quis dizer é verdade, há aqui uma apologia contra o desenvolvimento que é idealista e tola. Trata-se de uma ideia atual de que temos que renunciar ao desenvolvimento dos meios de produção para termos uma vida mais feliz e mais em harmonia com a natureza.

Outra ideia bastante atual no cinema contemporâneo e a de retratar o cotidiano como repetição. Tem sido usada em inúmeros filmes, seja para representar um padrão, como no caso desse em particular, seja para representar uma anomalia, como em Feitiço do Tempo, de 1993, um dos primeiros do gênero.

O primado da repetição está no cerne da nossa cultura no chamado capitalismo tardio. Reflete como o capitalismo da era neoliberal globalizada afeta a nossa percepção e subjetividade. A repetição caracteriza-se pela ausência de tempo, em especial, de memória. Se todo dia é sempre igual ao outro, não preciso me preocupar com o futuro e nem aprender com o passado.

É um comportamento autômato, de máquina, ou seja, não é humano. Pode-se questionar que se trata de uma forma de renúncia que visa o transcendental e o espiritual, como em certas crenças budistas ou até mesmo cristãs.

No entanto, aplicada à prática da vida diária, abre um precedente muito perigoso que nega qualquer conflito e, por isso, impede qualquer transformação.

Atualmente, vivemos a cultura da repetição. Marx diria que da farsa. Repetem-se os padrões como se não houvesse passado. Não lembramos de nada que tenha acontecido na semana passada. Também não lembramos, coletivamente, das causas do golpe de estado de 2016.

Não ter memória é também não ter história. Isso explica porque tentam nos fazer acreditar que, na Palestina, tudo começou em 7 de outubro de 2023.

Vivemos um eterno presente. Isso talvez o filme capte bem. O otimismo de Hirayama é o otimismo ocidental de quem não tem passado e não tem futuro.

Mas, Wenders, um cineasta que conhece seu ofício, volta-se para o conflito que surge de agentes externos para atrapalhar a existência contemplativa do personagem principal. Uma sobrinha, uma irmã, um homem que morre de câncer são suficientes para desequilibrar sua disciplina e expor sua fragilidade.

Só assim, no conflito, é que Wenders lembra que não dá para ser uma bolha. Bem no finzinho de seu filme.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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