O Carnaval está chegando, e os identitários prometem azedar a maior festa popular do Brasil. Desde o fim do ano passado, vêm sendo distribuídos na imprensa burguesa e em sites de ONGs os célebres textos em forma de itens, à maneira das cartilhas de expressões preconceituosas (como “caixa-preta”, “buraco negro” e outras similares). Agora as matérias listam as “fantasias ofensivas”, que devem ser banidas para sempre do repertório dos foliões. As justificativas, sempre de cunho moralizante, tentam fazer o povo esquecer que a festa é pagã. No UOL, por exemplo, uma dessas matérias adverte: “Tenha cuidado na escolha da sua fantasia do Carnaval 2024”.
“Ter cuidado” na hora de vestir uma fantasia para brincar o Carnaval significa ter cuidado com aquilo que diz ou manifesta. Se a volta do Carnaval de rua, com seus bloquinhos, foi celebrada há alguns anos, pois o povo, afinal, estava ocupando o espaço público e se expressando livremente, agora a preocupação é controlar o que se pode manifestar durante a folia.
A política identitária usa de subterfúgios para fazer a população apoiar a censura. As “pessoas do bem” (não confundir com os “cidadãos de bem” do bolsonarismo) se convenceram de que os males do mundo se resumem às ofensas verbais que uns fazem contra outros, disparando “gatilhos emocionais”. Assim, se todos moderarem o que dizem, seguindo as cartilhas, o mundo se tornará um paraíso terreal. Nada mais confortável para uma pequena burguesia, que, mesmo se dizendo de esquerda, não tem disposição nenhuma para a luta política.
As marchinhas de Carnaval, típicas da cultura popular, já foram demonizadas nos últimos anos. Os trajes prometem ser o vilão deste ano. Vestir-se de índio (que tem de ser chamado de “indígena”), por exemplo, está proibido, porque um cocar de plástico comprado na 25 de Março e umas pinturas geométricas no rosto constituem apropriação de elementos sagrados da cultura ancestral. Por óbvio, a lista de vetos inclui referências ao universo afro: usar fantasia de “nega maluca”, com blackface (tinta escura no rosto), ou peruca de cabelo afro, a depender do humor de um juiz, pode até ser considerado crime de racismo recreativo (a pena, vale lembrar, é maior que a da injúria racial simples). O negro de peruca loira, um clássico, não ofende (porque não existe racismo contra brancos), mas, se ele estiver vestido de mulher, ou seja, se se fantasiar de “loira”, é provável que ofenda a comunidade LGBT, pois o que antes era um homem vestido de mulher agora pode ser alguém debochando de uma “mulher trans”. Pode ser que dê processo também.
Mas a coisa não para nos três grupos – índios, negros e LGBT – que são as vítimas do racismo estrutural (considerando que “transfobia”, embora não tenha nada a ver com raça, passou a ser crime “por analogia” ao racismo). A polícia do Carnaval avisa que usar fantasia de cigano, bem como de japonês, de muçulmano, de figuras religiosas em geral (Jesus Cristo, orixás, santos católicos, monges, dalai-lama, Maomé, padres, pastores), também está vetado, agora por desrespeito à diversidade de religiões.
Bem, o folião que, a esta altura, esteja pensando em se fantasiar de algum tipo de profissional deve considerar algumas questões. Gari, por exemplo, está proibido, pois, segundo as cartilhas, só vai poder sair no bloco vestido de gari quem for efetivamente um gari! Explica-se que a profissão é desvalorizada socialmente e que, por isso, a fantasia seria um deboche. Segundo o site Preto no Branco, “os garis fazem parte de um grupo de profissionais que ainda são ridicularizados e humilhados por fazer o que fazem”. Nesse caso, pergunta-se se uma eventual fantasia de juiz da corte suprema, profissão altamente valorizada socialmente, estaria liberada. O que parece ter sido esquecido é que as pessoas se fantasiam daquilo que não são. E, além disso, muitas das fantasias de Carnaval são desengonçadas (homem vestido de noiva, gordo vestido de Homem-Aranha), porque são pensadas para provocar o riso.
Também ficamos sabendo que o veto vale para fantasias de enfermeira, babá, empregada doméstica ou bombeira, cujas vestes mínimas, típicas da festa popular em um país de verões indiscretos, levem a uma “sexualização das profissões”, o que, como se pode intuir, ofende as mulheres. O problema da sexualização também afeta as fantasias de índias, odaliscas, havaianas e, naturalmente, as mulheres seminuas que se apresentam nas escolas de samba. É Carnaval ou procissão?
Fantasia de gay, nem pensar. Gueixa também não, pois “não é respeitoso usar como fantasia as vestimentas de mulheres que dedicam a vida a estudar a tradição milenar japonesa e transmiti-la através das artes”, segundo o site mencionado, e “baiana”, bem, só se a pessoa for uma baiana! Fantasia de gordo também não, porque é gordofobia recreativa.
Restam os personagens históricos, mas aí também depende. Se o engraçadinho meter um bigodinho de Hitler e sair por aí cantando “alalaô”, é bem provável que vá parar no xilindró por crime de apologia do nazismo. No ano de 2002, logo depois do atentado que derrubou as torres gêmeas no fatídico 11 de Setembro, máscaras de Osama bin Laden eram disputadíssimas. Imagine se fosse hoje! O que não fica claro é se fantasia é deboche ou homenagem, pois a interpretação varia de acordo com o caso. Para os identitários, fantasia de índio é deboche, mas fantasia de Hitler é apologia (elogio, homenagem). Ocorre, porém, que bem poderia ser exatamente o contrário: homenagem aos índios e deboche do ditador.
O problema disso tudo é que está cada vez maior a sanha para criminalizar o direito de expressão e a cultura popular. As cartilhas de palavras preconceituosas arregimentam um sem-número de expressões populares; as fantasias de Carnaval são igualmente manifestações do povo, visto como um repositório de preconceitos. A conclusão é que o povo precisa ser controlado, pois é o responsável pelo preconceito, o grande mal da humanidade. Os doutos, que sabem qual é o jeito certo de ser, de pensar e de se manifestar, escrevem as cartilhas propagadas pelas ONGs e referendadas pela imprensa burguesa.