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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

Cão Branco, de Samuel Fuller

Uma discussão contundente sobre o racismo

Lançado em 1982, o filme “Cão branco”, do diretor estadunidense Samuel Fuller, é um contundente manifesto contra o racismo; no filme, um cão pastor-branco suíço, animal em princípio adorável, é condicionado a atacar pessoas negras. Na trama, uma mocinha atropela acidentalmente um cachorro; salvo e adotado por ela, ele se torna seu melhor amigo, chegando a defendê-la de ser estuprada por um invasor de domicílio. Dessa maneira, o animal, bastante manso e carinhoso, exceto quando defende a dona, ganha também a confiança de quem assiste ao filme, até ele assassinar um trabalhador negro e quase fazer o mesmo com uma das melhores amigas da protagonista. Sobre o assassinato, ninguém fica sabendo, pois é cometido durante suas fugas; o segundo ataque, porém, acontece na presença de várias testemunhas e, bastante intrigada com o comportamento do cachorro, a dona sai em busca de esclarecimento.

A mocinha é atriz, por isso ela procura, entre os adestradores de animais especialistas em cinema, alguém para lhe ajudar com o cão branco, quando descobre, no centro de treinamento Arca de Noé, que seu animal é cão branco não apenas devido à cor da pelagem, mas por haver sido condicionado a atacar pessoas negras. Por quais processos isso se faz? Um racista contrata negros sem teto ou viciados em drogas, os quais, a troco de comida, bebida ou narcóticos, maltratam severamente o animal, condicionando-o a investir violenta e letalmente contra quaisquer pessoas com a mesma cor de pele. No centro, justamente um treinador negro procura desfazer tal disciplina nefasta, todavia, isso não é fácil pois, uma vez descondicionado, o cão pode investir contra quaisquer pessoas, sejam elas brancas ou negras, necessitando, dessa maneira, ser sacrificado.

No filme, a humanização do cachorro corresponde à desumanização de seu antigo dono, responsável pelo comportamento criminoso do animal, cuja violência expressa, antes de tudo, a violência humana, em razão do cão, apesar de tudo, permanecer inocente. Nessas circunstâncias, seria o cão branco metáfora do homem branco racista? Numa leitura imediata, carente da complexificação digna do filme de Fuller, talvez o cachorro cumpra esse papel, entretanto, as demais personagens, todas elas tratadas com profundidade, conduzem a significação do animal além dessa função. Restringindo-se aos protagonistas principais, a mocinha, vivida pela atriz Kristy McNichol, apesar da juventude, é dona da própria vontade, vivendo independentemente dos pais e do namorado; o treinador, interpretado por Paul Winfield, não veio da África nem fala com os animais, pois na trama, seus pais são professores universitários, sendo opção dele mesmo trabalhar com os bichos. E o antigo dono do cachorro? Seria ele um porco nazista, tão raivoso quanto o animal quando enfurecido? Contrariamente, trata-se de um senhor idoso, aparentemente pacato, quem procura pelo cão acompanhado das duas netinhas.

Apresentando o racismo em termos de adestramento, isto é, enquanto resposta a determinado estímulo condicionado, cabe indagar se o dono do animal não estaria, a seu modo, tão condicionado como ele. Em princípio, o cão branco não nasceu racista; ele se transformou nisso devido a estímulos tornados, artificialmente, causas de reflexos específicos. Ora, isso se passa nas sociedades etnicamente divididas; quantas pessoas não são condicionadas a conceber negros, asiáticos, indianos e demais diferenças enquanto traços de inferioridade intelectual, moral etc.? A igreja católica, por exemplo, para justificar a escravidão, considerou os negros seres sem alma, aproximando-os dos animais e, provavelmente, pensava o mesmo dos japoneses, quando abençoou as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, ou a respeito dos judeus, quando acobertou a fuga dos porcos nazistas depois da vitória da Rússia sobre a Alemanha, na Segunda Guerra Mundial.

Desse ponto de vista, se o racismo não é natural, mas algo culturalmente construído, seria ele estrutural, conforme pensa boa parte da pequena burguesia? Raciocinando em termos da corrente estruturalista, típica da dita inteligência francesa de meados do século XX, tal racismo estrutural seria categoria social, antropológica e até mesmo linguística ou semiótica, definida em sistemas políticos em que categorias se definem em relação às demais categorias do mesmo sistema. Dessas estruturas sociais, portanto, emanaria o racismo enquanto prática justificada por determinada episteme, isto é, por determinado sistema de pensamento em torno do qual se organizam os demais saberes sociais; desse modo, o racismo pairaria sobre a humanidade, dirigindo seus pensamentos, sejam eles conscientes ou não, mas dogmaticamente, não deixando escolha às pessoas além de serem estruturalmente racistas.

Nessa visão isenta de história, típica do estruturalismo burguês, a única explicação do racismo seria, justamente, a deriva de uma estrutura, da qual ele emana, quer dizer, da qual ele procede; entretanto, basta considerar o materialismo histórico para se verificar as origens econômicas não apenas do racismo, mas das demais mazelas sociais fundadas no preconceito, revelando-se as causas políticas das estruturas e das tais epistemes.

Não vou me estender recapitulando os diagnósticos marxistas do racismo, do machismo etc.; sobre as relações entre homens e mulheres, o próprio Lenin faz observações precisas em seus encontros com Clara Zetkin em 1920, devidamente registradas em livros, as quais podem, tranquilamente, estender-se às relações entre brancos e negros, judeus e palestinos… gays, lésbicas, transsexuais e demais diferenças. Naqueles encontros, o revolucionário comunista analisa as questões femininas por meio da luta de classes e não por meio de identidades sexualmente determinadas entre homens e mulheres, nas quais não são consideradas classes sociais, mascarando, dessa maneira, problemas reais, materialmente determinados, e mais prementes do que discutir o sexo e o casamento entre dos aborígenes australianos, sendo tal ironia feita pelo próprio Lenin.

O filme de Fuller não leva a problematização do racismo tão longe, contudo, nele se defende sua desnaturalização, discutindo-o politicamente, além de apontar para a convivência, senão pacífica, pois não se combatem racistas apenas com palavras e argumentos, entre quem está disposto a ir até o fim para acabar com o preconceito. Para tanto, vale lembrar de duas cenas: (1) o jantar entre amigos, compartilhado pelo treinador e a atriz; (2) única atitude violenta da mocinha, quem quase atropela o vovô racista e suas netinhas nas cenas finais.

 

 

 

 

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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