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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Coluna

A quem interessa desmerecer a língua portuguesa?

Quilombolas e indígenas devem saber inglês, mas esperar que escritoras quilombolas e indígenas saibam usar bem os recursos do português é racismo

Sua Excelência, o ministro Luís Roberto Barroso, ora presidente do STF, afirmou que Chico Buarque teria recebido o Prêmio Nobel de Literatura antes de Bob Dylan se a língua portuguesa não fosse uma barreira. O comentário bem poderia ter sido feito na mesa de um restaurante, entre ilustres convivas, e talvez tivéssemos sido poupados de tomar conhecimento dele. Mas não. A afirmação foi feita durante a conferência de abertura da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em São José, na Costa Rica, na última segunda-feira. Resta saber se isso foi um elogio ao Chico Buarque – de fato, merecedor da honraria – ou se foi mais uma oportunidade de desmerecer a língua portuguesa, o que parece ser um novo esporte nacional.

Para começo de conversa, José Saramago ganhou o Nobel em 1998. A língua portuguesa não constituiu barreira nenhuma à escolha de seu nome. No ano passado, por exemplo, o laureado foi o norueguês Jon Fosse. Em anos recentes, embora tenha havido prevalência de autores de língua inglesa e de língua alemã, houve ganhadores da China, da Hungria, da França, da Polônia, da Bielorrússia etc., todos escrevendo cada qual no seu idioma. A premiação, diferentemente do que pensam alguns, não é efeito do número de traduções mundo afora, mas, muitas vezes, o fator que desencadeia o interesse pela obra e, consequentemente, a sua edição em outras línguas.

Outro aspecto digno de nota é que boa parte do valor do escritor está no seu modo de usar os recursos da língua em que se expressa. Nas suas letras de canções, Chico Buarque revela maestria exatamente no uso da língua portuguesa. O verso “Pai, afasta de mim esse cálice”, no contexto da ditadura militar e da censura, queria dizer “afasta de mim esse ‘cale-se’”. Na mesma canção, a sutileza de uma rima que o ouvinte realiza mentalmente no trecho: “Como beber dessa bebida amarga?/ Tragar a dor, engolir a labuta?/Mesmo calada a boca, resta o peito/ Silêncio na cidade não se escuta/ De que me vale ser filho da santa?/Melhor seria ser filho da outra/ Outra realidade menos morta/ Tanta mentira, tanta força bruta”. Os exemplos são inúmeros. A originalidade do seu trabalho linguístico está na origem do seu valor como poeta, um poeta da língua portuguesa.

Ultimamente, no entanto, a habilidade de expressão na língua portuguesa vem sendo tratada como “racismo linguístico” e subserviência ao “modelo decorrente da norma linguística imposta pelos colonizadores desta nação” – os termos aqui foram tomados de empréstimo de uma carta do coletivo “Nós, Carolinas do Brasil” enviada ao Ministério da Cultura, promotor do Prêmio Carolina de Jesus, instituído no ano passado para contemplar apenas mulheres (“cis” e “trans”, bem entendido). A carta pedia a revogação do concurso sob a alegação de que um de seus critérios de seleção das vencedoras seria o “domínio técnico e [a] inventividade no uso dos recursos linguísticos”.

Curiosamente, o prêmio contempla uma série de cotas (quilombola, indígena, pessoa com deficiência, mulher trans etc. etc. etc.), o que já sinaliza de saída que o critério de seleção dos vencedores passa necessariamente pela “identidade”. Mesmo assim, a habilidade no manejo da língua e a originalidade no uso dos seus recursos foram objeto de queixa, pois tal exigência teria sido responsável pela ausência de uma mulher quilombola ou indígena entre as laureadas. O ministério abriu mais vagas na premiação e deu um jeito de apaziguar os ânimos do pessoal. Foram distribuídos R$ 3,650 milhões a 73 autoras, entre as quais uma trans (ufa!).

Nesse caso particular, esperar que quilombolas e indígenas tivessem habilidades de usar os recursos da língua portuguesa foi considerado uma expressão de “racismo linguístico”. Muito bem. Vejamos este anúncio da escola de negócios da UFRJ:

“O COPPEAD/UFRJ está com inscrições abertas para seu mestrado, que é gratuito, 100% ministrado em inglês e com cotas para negros, pardos, indígenas, quilombolas e PcD.

O programa é reconhecido por seu alto nível de conteúdo programático, corpo docente e relação com o mercado empresarial. Ele é voltado para profissionais com pelo menos três anos de experiência em empresas de qualquer setor ou porte”.

Como o curso é ministrado “100% em inglês” e oferece cotas para indígenas e quilombolas, é de supor que essas pessoas tenham bom domínio do idioma; caso contrário, para que as cotas?  Há, portanto, indígenas e quilombolas prontos para frequentar o curso ministrado em inglês – isso não foi visto como “racismo linguístico”. É provável que haja duas categorias de “indígenas e quilombolas”: de um lado, os que, de fato, são remanescentes das culturas antigas e vivem nos seus territórios; de outro, os “descendentes”, que, vez ou outra, aparecem de cocar em algum programa de TV e vão frequentar a escola de negócios da UFRJ.

Então, exigir de quilombolas e indígenas que conheçam bem o idioma inglês é correto, mas esperar que escritoras quilombolas e indígenas saibam usar bem os recursos do português é racismo. Como nos parece, o problema mesmo é a língua portuguesa, essa “barreira” que o presidente do STF, no exterior, diz existir ao reconhecimento dos talentos brasileiros. Se depender da burguesia, institui-se logo o inglês como língua oficial do Brasil. Enquanto isso, os identitários vivem às turras com o “colonizador português” dos séculos passados.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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