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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

A poesia de Amador Ribeiro Neto

Um poeta brasileiro entre o regionalismo e a vanguarda

Por volta de 2006, o poeta Frederico Barbosa me sugeriu ler “Barrocidade”, livro de poesias do Amador Ribeiro Neto, editado pela Landy, da coleção Alguidar, coordenada pelo próprio Frederico. Desde aqueles anos, sou amigo do Amador, quem, semelhantemente a mim, divide o tempo entre atividades acadêmicas e literatura, sendo professor do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba e coordenador do laboratório de estudos semióticos de lá

Quando leio poesias, costumo procurar por procedimentos linguísticos e literários recorrentes, buscando pelos estilos de cada poeta; dessa maneira, eu consigo entender conforme cada um deles se vale da mesma língua para se expressar. Em “Barrocidade”, encontrei a preferência do poeta por alguns processos discursivos:

(1) Amador gosta de fazer listas, vários poemas seus são coleções de palavras. Listas são campos semânticos, elas não se resumem a sequências de palavras e coisas, sendo, isso sim, conjuntos organizados para fazer sentido. O poema “vade-mecum” é uma lista, Amador explicita isso colocando as palavras em ordem alfabética; eis alguns fragmentos das 31 palavras da lista:

“asco / arrenegado / (…) / coxo / cujo / (…) / não-sei-que-diga / pé-de-cabra / (…) / tisnado // como o diabo”

(2) Amador forma compostos nominais; tal processo linguístico, comum ao sânscrito e às línguas germânicas, é um dos recursos preferidos pelo poeta para complexificar os significados lexicais. Eis dois exemplos nestes dois versos do poema “sampa revisitada”:

“cidade / velha aflições desconhecidanciã / (…) / desembaçada no centro / toda in na paulistaugustaconsa”

(3) Nos poemas, há constantes diálogos com o repertório da música popular brasileira; para ilustrar, eis uma estrofe de “arribação”, em que Amador dialoga com Adoniran Barbosa:

“(…) / lagoa tapada atrás duns versos açuns dispersos grandes / movimentos adonirançando malocas saudades / ah aquele cruzamento da canção / pode”

(4) Quando se refere a religiões, Amador prefere as afro-brasileiras, feito a Umbanda ou o Candomblé; o poema “pomba”, entre seus temas, também é invocação da Pomba-Gira, com ela substituindo o Espírito Santo cristão, revelando-se acima dele:

“cães são sempre cães vadios / mães são sempre mulheres santas de nossos pais / espírito santo / quase sempre é pomba / sempre funciona pomba / gira”

(5) Nos poemas, há diálogos constantes com o Modernismo brasileiro na vertente proposta por Oswald de Andrade; nos versos de “klaxon”, além da composição por sílabas sugerindo onomatopeias de buzinas no último verso, o título se refere à famosa revista modernista:

“som tevê enrosca o mesmo som / imagem tevê engasga mesmo som // tom tevê engalha mesmo cedê rom / por estas & mais aquelas é que é de bom tom // com som can tem com tem tem são tam bém tom bem sem som”

(6) Amador não se esquece da poesia social, bastante exercida no Brasil pelos poetas adversários da direita; eis o poema “falta água e falta”, com protestos tanto contra realidades hostis vividas no campo, feito secas, quanto contra injustiças sociais urbanas, vividas nas periferias:

“falta água e falta / água tens e não tens / os surfistas de são miguel paulista quebram ondas / nos tetos dos trens”

(7) Por fim, o poeta se vale de variações linguísticas; eis os versos finais de “tabuleiro”:

“(…) / quer tomar / caju // ah é né / pois tome hôme // troncho / tome-tome & some & // adispoi / num vá dizê // ô / ie”

Dessa maneira, diante de listas, compostos nominais e variantes linguísticas, vanguarda e regionalismo, diálogos com o Modernismo e a MPB, invocações pagãs e protestos contra o fascismo, o que esperar da poesia de Amador Ribeiro Neto? O poema “descobrimento” responde a essa questão:

“guarda-roupa da história com h e neocapitais / fantasias teias telas cabos teles naves tels veias nets poeiras / sertão vip varandas antenadas na copa dos revistas in / morenos pretos brancos amarelos seixos / farolizando macaxeiras pra matar fome com farinha de mandioca / história música cidades crenças ourivesarias artesanatos contrabandos / oceanos sertões caviares ouropéis rapaduras campos descompassos / guarda-fantasias guarda-enredos guarda-estruturas guarda-sons / que são / frente às descobertas da poesia hein cabral”

Além de expressar os processos discursivos determinados anteriormente, o poema mostra os modos de Amador inseri-los em sua proposta poética nacionalista; para desenvolver isso, porém, é preciso esclarecer a quais ideologias nacionais ele se alia. O nacionalismo é plurívoco; há poetas feito o Amador, com vistas para o futuro e buscando por outros territórios brasileiros, entre eles, territórios discursivos, feito aqueles que a língua portuguesa e seus discursos deveriam ocupar – por exemplo, os espaços das comunicações de massa –; há nacionalistas ingênuos, confusos, e, comumente, bastante reacionários, insistindo em identificar a cultura brasileira com estereótipos, em regra, tirados do folclore. Entre os primeiros, há quem internacionaliza o Brasil – Hermeto Pascoal, Airto Moreira e Nana Vasconcelos fizeram isso percutindo panelas e soprando berrantes –, entre os segundos, há quem apoie ditaduras e golpes de estado… o Amador, certamente, está do lado dos progressistas.

Assim, com as listas do poeta e sua linguagem, predominantemente nominal, ocupa-se o mundo da comunicação, demarcando-se campos semânticos nos quais o Brasil ecoa por meio palavra, “frente às descobertas da poesia”. Vale a pena, para confirmar isso, verificar a conciliação entre valores mundiais e regionais em dois poemas exemplares das concepções do Amador: (1) “pulso”, com o Brasil se expandindo via mundos virtuais, entretanto, com a própria voz; (2) “pífaros de caruaru”, com a música regional brasileira ressoando na poesia de vanguarda, inaugurada com o Modernismo:

pulso

“o dormir o / excaféin // o microcomputador o / meu com tantinternet // a proesia lixa o / estrala foices // & / deleta a falsivivacidade sem-terra da razão // o brother o / mermãozinho do caralho tá fodaço pra caralho sô”

pífaros de caruaru

“um som i um som u / flauta apita no atabaque das consoantes / fica soando fino um u ínfimo último / sinal ambulância caixinha sirene antimusical // a menina de treze anos e vai evém / a bolsa d’água arrebenta marginal do tietê / enchente / congestionamento 84 quilômetros outdoor // o cordão ensanguentado estira-se / ao longo ao pleno ao vago ao cheio // um som i um som u apagando-se / ou gregório ou oswald ou cássia eller / chega / pagu”

Gostaria, ainda, de enfatizar o homoerotismo, outro tema da poesia do Amador Ribeiro Neto. Em “namorados”, o sexo homoerótico participa da utopia gay em que todos são felizes, com o Dia dos Namorados se eternizando hedonisticamente – “amanhã vai ser outro dia 12” –; além disso, a comparação do falo com os edifícios – “paus em pé empire eucaliptos perigo pegar” – é bastante original.

“arte pia válida cozinha walita / o nome corvo café feijão carne de sol arrumadinho & bolo de / senão por que maria cream fox freezer pano de chão postmodern platôs / onda waffers mornomorango / cobertura tom / ele toparará a piscina chantilly / disco rígido faz baby filme mambrana lembrança / margarina gasalina funciona-se / yes he does ele encara / chama o cara / chama o cara / ele quero ser ele vaco profana virginando madona santa stone / berrando sozinho fudidinho / lindos negros tintos o / lhos de mãe menininha do / gato que ele assanha / arranha apanha barganha / & / geme no sim sem sim com / telhada na tua pele vermelha / fogueirardor / em cima de evém evém evém / cu é o cazzo cu é o céu / cada vez mais pra além de tudo / & / a porra deite cheire faz suar / ô meu nossa que deuslícias / de / paus em pé empire eucaliptos perigo pegar / pra now dear / evém evém vindo vindo vindo / balança / amanhã / vai / ser / outro / dia / 12”

Por fim, resta comentar, brevemente, a segunda parte de “Barrocidade”. O livro é dividido em duas partes, todos os poemas citados anteriormente pertencem à primeira parte; a divisão se dá pelo poema visual “sem sem sem com”, com os títulos dos poemas da segunda parte referindo-se a nomes de poetas, músicos, outros artistas, explicitando-se, por meio das homenagens, as influências do Amador Ribeiro Neto. Divulgar essa segunda parte, contudo, é tema para outras colunas.

 

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