Em artigo intitulado Estado de excepción sin golpe militar, publicado pelo portal peronista Página/12, o psicanalista Jorge Alemán apresenta sua caracterização do governo de Javier Milei, empossado no dia 10 de dezembro como novo mandatário argentino. Alemán considera Milei um representante do neoliberalismo – até aí, é difícil que alguém discorde, uma vez que o presidente latino-americano, desde sua campanha eleitoral, defendia a privatização de tudo o que restou da economia argentina. Onde Alemán falha, no entanto, é na sua tentativa de explicar o caráter profundamente antidemocrático do governo.
Para Alemán, “há vários anos venho afirmando que o Neoliberalismo só se sustenta eliminando o controle democrático sobre os poderes concentrados”. É uma tese correta e lógica. Se o neoliberalismo é a expressão mais selvagem dos interesses capitalistas, é inevitável que tal política venha acompanhada de uma duríssima repressão. Afinal, medidas como a destruição da indústria nacional, que, por sua vez, levam a um contingente monumental de desempregados, despertam a revolta das massas. Para conter essa revolta, o governo que implementa a política neoliberal terá, portanto, que fazer uso da força.
O equívoco do psicanalista, no entanto, está em afirmar que, “para alcançar essa situação, foi necessário que diferentes dispositivos desencadeassem, em diferentes segmentos da população, um ódio sistemático a toda a cultura política que constituía a referência histórica do que é chamado de projeto nacional e popular”. Isto é, para Alemán, as pessoas seriam “convencidas” de que o projeto neoliberal é superior a um “projeto nacional” por meio de “diferentes positivos”. Trata-se, portanto, de uma contradição do próprio pensamento do articulista da Página/12: se as pessoas são convencidas de que o projeto neoliberal é legítimo, para que seria necessária, portanto, a repressão?
Para que não haja dúvidas de que é disso que se trata a análise de Jorge Alemán, vejamos o trecho abaixo:
“Essa operação exigiu que, ao longo dos anos, o humor social fosse transformado a partir de uma mudança subjetiva que possibilitasse a emergência de sujeitos capturados por um imaginário impenetrável para a argumentação, o debate e a análise política. Nesse sentido, a instrumentação persistente e tenaz do termo ‘corrupção’ foi determinante.”
Seríamos forçados a concluir, portanto, que a vitória de Milei aconteceu porque as massas argentinas foram convencidas de que o fascista argentino iria resolver os seus problemas. Isto é, de que o governo Milei, ainda que fosse a representação diametralmente oposta dos interesses da população, teria sido eleito pela própria população. Ou, como diria Alemán, “uma ditadura sem golpe de Estado, que, a partir desse ponto, utiliza o Estado para administrar o aparato repressivo e, agora sim, com seus diferentes protocolos de regulação”.
Esse problema não é secundário, mas crucial para compreender a situação política. Na prática, o que Alemán faz é uma defesa do processo eleitoral argentino – a defesa de que a vitória de Milei é a expressão da vontade popular. Essa concepção levará a um conjunto de erros na conduta da esquerda perante o governo. Por exemplo, se Milei é a vontade popular, seria legítimo pedir a sua saída? Se Milei é a expressão da vontade popular, será possível mobilizar os trabalhadores contra as suas medidas? Considerar as eleições argentinas como um processo lícito serve apenas para consolidar o governo Milei – isto é, para restringir as possibilidades da esquerda argentina a uma atuação puramente parlamentar.
Acontece que a vitória de Milei não é o advento de uma ditadura sem golpe de Estado, mas é, ela mesma, um golpe de Estado. Milei é a expressão de interesses alheios à classe operária argentina. Milei é um agente do Departamento de Estado norte-americano, dos grandes bancos e monopólios internacionais. Milei foi alçado a presidente para esmagar, literalmente, a oposição popular ao regime. O novo presidente, inclusive, acaba de enviar para o Congresso um projeto que prevê que qualquer reunião pública com mais de duas pessoas tenha que ser autorizada pelo governo!
A vitória de Milei em si só não seria um golpe de Estado se Milei fosse um representante legítimo do movimento popular que, por algum motivo, tivesse se corrompido completamente e mudasse sua política radicalmente. Até mesmo a vitória eleitoral de Lenín Moreno, no Equador, pode ser considerada um golpe de Estado porque é óbvio que o então vice de Rafael Corrêa já havia sido cooptado pelo imperialismo.
O fato é que a eleição de Milei foi, necessariamente, um golpe de Estado. Ou, para ser mais preciso: mais um capítulo de um processo golpista em curso na Argentina, que começou antes da eleição de 2015, quando foi eleito Mauricio Macri. A vitória de Macri já foi, em si, um golpe de Estado, pois ela se deu em meio a uma perseguição do próprio Estado argentino à principal liderança da esquerda do país, Cristina Kirchner. Naquelas condições, em que a imprensa se cartelizou contra o kirchnerismo e as instituições partiram para uma ofensiva policialesca contra a figura mais popular do país sul-americano, a vitória de Macri não pode ser considerada outra coisa que não um golpe de Estado.
A vitória de Milei é apenas mais um capítulo desse processo. Ela foi possível não porque as massas foram convencidas de que o melhor para o país seria o “projeto neoliberal”, mas sim porque elas foram duramente golpeadas e, atordoadas, foram incapazes de reagir à altura. Uma das principais demonstrações disso é que a pressão do imperialismo contra a esquerda foi tanta que o kirchnerismo abriu mão de concorrer às eleições, apoiando um candidato da ala direita do peronismo.