Na esteira das denúncias contra o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos de assédio contra estudantes da Universidade de Coimbra, apareceram as teorias identitárias extravagantes tentando explicar o que aconteceu.
No sítio Universa UOL, a colunista Natalia Timerman escreveu artigo chamado: “O que fazer com livros e textos escritos por intelectuais assediadores?”.
Para sermos justos com a colunista, ela não tira nenhuma conclusão em seu artigo, que é composto inteiramente de perguntas como as do título. Mas a própria preocupação expressa no título e nas perguntas desenvolvidas no texto revelam a confusão feita atualmente sobre casos como esses.
A princípio, a resposta à pergunta do título deveria ser simples. Os livros e textos das pessoas devem ser, em primeiro lugar avaliados por si só. A personalidade de um escritor pode ser conhecida e até levada em consideração, mas o que está ali escrito está ali escrito. Não deveria haver dúvida sobre, a não ser que se provasse que o autor em questão é um charlatão que não escreveu aquilo.
Levando ao extremo, o que fazer, por exemplo, com o livro Minha luta, de Adolf Hitler. Nada. O livro existe para ser lido, interpretado criticamente, e é isso. Deve-se conhecer a história do mundo, da Alemanha, da Segunda Guerra e isso tudo é conhecimento necessário. Não se deve controlar o conhecimento das pessoas.
Dia 8 de abril foi o aniversário de morte de 50 anos de Pablo Picasso, um dos maiores pintores da história. A importância e a diversidade da obra de Picasso, monumental, inovadora, revolucionária, nada disso foi o tema central de uma série de artigos publicados pela imprensa capitalista. O foco foi “cancelar” Picasso (lembrando que ele morreu há 50 anos) porque supostamente ele era um “macho tóxico”, “misógeno”, machista e sabe-se lá mais o que.
Qual a real importância desse aspecto para o que foi Pablo Picasso na história? Absolutamente nenhuma. É quase tão relevante quanto saber dos detalhes conjugais de personalidade nas revistas de fofoca. Mas o identitarismo atual transformou tudo isso numa grande cruzada moral.
O caso de Boaventura pode até ser diferente. Ele está vivo, trabalhando no emprego onde supostamente cometeu seus assédios. Boaventura também está muito longe de ter a importância de um Picasso. Até ontem, era amado pela esquerda pequeno-burguesa por suas teorias sobre democracia participativa. Mas a lógica segue a mesma: não é necessário fazer nada com os livros e textos de Boaventura nem de qualquer outro acusado de assédio. Os livros devem continuar cumprindo o papel que sempre cumpriram.
Não for assim, estaremos de volta à Idade Média quando se queimaram livros que não eram moralmente aceitos pela Igreja. A Santa Inquisição tinha bons argumentos morais para a fogueira, não se enganem que muitos pareciam com os usados hoje pelos “canceladores”.
O restante do artigo são feitos de perguntas como essa, que insinuam que o mundo vai acabar porque o “machismo está em todos os lugares”: “Há, no mundo de hoje, alguma associação de estudo ou trabalho que já tenha conseguido deixar de ser estruturalmente machista?”, questiona a colunista.
Ou piora ainda, todos os homens são machistas e abusivos: “Há algum homem crescido e formado numa sociedade machista que não tenha jamais sido abusivo?”.
A resposta para todas essas perguntas e mais algumas devem ser buscadas no mundo real, não na histeria identitária que acredita que o problema do mundo está nas pequenas relações entre as pessoas. Se há todos esses problemas – e eles de fato existem – isso só pode ser resolvido com uma luta política mais ampla.
Não será individualmente, nem jogando homens contra mulheres como fazem as identitárias com a ideologia de que “todos os homens são inimigos”. As mulheres precisam se organizar para lutar por seus direitos concretos e devem estar aliadas aos homens para isso.
O problema central da mulher está muito longe de se resumir a casos de assédio numa universidade. As mulheres têm problemas infinitamente maiores do que esse e não se vê ninguém preocupado com eles.
A preocupação é apenas como será o melhor jeito de pendurar alguém numa fogueira.
Por fim, antes de qualquer coisa, é preciso saber se as acusações são verdadeiras porque muito mais desumano do que um assédio é a prisão injusta.