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Juca Simonard

Editor da revista Na Zona do Agrião e redator do Dossiê Causa Operária

Coluna

Doutrina Proletária de Guerra: início da campanha contra Trótski

Doutrina Proletária de Guerra era o semelhante militar da “cultura proletária”, sua “irmã mais velha”, segundo Trótski

É impossível entender o avanço da burocracia stalinista na União Soviética, primeiro Estado operário a existir na história, sem levar em consideração fatos importantes da Guerra Civil Russa, que explodiu quase imediatamente após a tomada do poder pelos bolcheviques. Da mesma forma, é fundamental levar em consideração o desenvolvimento da campanha contra a ala proletária do partido, liderada por Leon Trótski, o segundo homem da Revolução Russa (atrás somente de Vladimir Lênin). Nesse período, inclusive, um setor do Partido Bolchevique travou uma campanha contra o que viria a ser chamado de “trotskismo” por meio da “Doutrina Proletária de Guerra”.

Doutrina Proletária de Guerra

A Doutrina Proletária de Guerra foi uma “escola” que apareceu dentro do Exército Vermelho durante a Guerra Civil, buscando estabelecer um dogma “proletário” para o combate militar. Seus principais defensores foram Mikhail Tukhachevsky, Mikhail Frunze, Sergei Gusev, Kliment Vorochilov e outros comissários e oficiais soviéticos da época.

Defendendo um método “proletário” para a guerra revolucionária, os teóricos da doutrina conceberam um Estado-Maior Internacional para corroborar com o internacionalismo proletário; um exército sem centralização e sem o uso de oficiais ou especialistas militares do exército imperial; e a defesa dos “métodos de guerrilha como sistema permanente e universal” (Trótski, A Revolução Traída). Dessa forma, os doutrinários estabeleciam oposição ao método militar da guerra civil de Trótski, chefe das forças armadas, e Lênin, chefe do governo, que defendiam uma intensa centralização e o aproveitamento de especialistas militares dos antigos exércitos da burguesia.

Bela Kun, Jacques Sadoul, Leon Trótski, Mikhail Frunze e Sergei Gusev na Ucrânia, em 1920, durante a guerra

Em busca de instituir “o exército e os métodos de guerra proletários”, a Doutrina Proletária de Guerra era o semelhante militar da “cultura proletária”, sua “irmã mais velha”, segundo Trótski. A defesa de uma cultura proletária também foi adotada por alguns intelectuais bolcheviques após a tomada do poder a fim de estabelecer “vanguardas culturais socialistas”, o que foi criticado por Trótski, pois se assentava em bases “esquemáticas e metafísicas”.

Do ponto de vista do marxismo, a Doutrina Proletária de Guerra, assim como sua “irmã mais velha” na cultura, mostrava-se meramente idealista, sem bases reais. Da mesma forma que é impossível esquematizar uma sociedade ideal, como queriam os socialistas utópicos, não daria para idealizar um dogma “proletário” em qualquer tipo de setor da sociedade sem as bases econômicas específicas para isso.

“No fundo, a doutrina proletária da guerra era fortemente análoga à da ‘cultura proletária’, da qual compartilhou inteiramente o caráter esquemático e metafísico. Os poucos trabalhos deixados pelos seus autores não encerram mais do que umas poucas receitas práticas e nada novas, tiradas por dedução de uma definição estandardizada de proletariado — classe internacional na ofensiva — , isto é, de abstrações psicológicas e não inspiradas pelas condições reais de lugar e de tempo. O marxismo, exaltado em cada linha, dava lugar ao mais puro idealismo”. (Trótski)

O fundador do socialismo científico, Karl Marx, afirmou que “o direito não pode nunca se elevar acima do regime econômico e do desenvolvimento cultural da sociedade condicionada por esse regime”. Sendo assim, como a União Soviética, atrasada do ponto de vista do próprio capitalismo, teria as condições essenciais de desenvolver uma cultura e uma doutrina de guerra socialistas?

Trótski reforçou que o papel da ditadura do proletariado bolchevique na guerra era juntar os métodos socialistas mais básicos, como o armamento do povo, aos métodos mais desenvolvidos do capitalismo, como as práticas militares da burguesia surgidas após as revoluções burguesas — algo que não ocorreu no Império Russo. Dessa forma, ele defendeu que tais práticas fossem geridas pelo governo operário, uma vez que a burguesia, mesmo em países oprimidos, já não cumpria mais um papel revolucionário na história. Em suma, a ditadura do proletariado deveria, ao mesmo tempo, criar milícias populares (base do regime socialista) e modernizar os métodos de guerra para se aproximar aos exércitos dos países capitalistas mais avançados.

Discurso de Trótski: A sagrada tarefa do Exército Vermelho

Isso não significa que Trótski sugeriu desconsiderar que o socialismo viesse a desenvolver novas táticas de guerra, mas apenas constatou que as bases materiais para o surgimento delas eram ainda escassas na atrasada Rússia. Portanto, as técnicas oriundas do novo regime precisariam de bases materiais concretas para aparecer, não podendo ser somente idealizadas. As táticas militares do socialismo, regime internacional da classe operária, só poderiam surgir da sua implantação nos países mais desenvolvidos — ou num país que, anteriormente atrasado, chegou, pela ditadura do proletariado e as condições do proletariado mundial, a um grau de avanço econômico similar ou superior ao dos países capitalistas mais ricos.

“Não duvido, pelo meu lado, que um país socialista, provido de uma economia socialista desenvolvida, se fosse constrangido a fazer guerra a um país burguês, a sua estratégia teria um aspecto completamente diferente. Mas isto não nos dá razão de querer imaginar, hoje, uma estratégia proletária. Desenvolvendo a economia socialista, elevando o nível cultural das massas, enriquecemos sem dúvida alguma a arte militar com novos métodos, por isso, introduzamo-nos com método na escola dos países capitalistas avançados sem tentarmos deduzir por processos lógicos, da natureza do proletariado, uma estratégia nova”, afirmou Trótski em oposição aos doutrinários da época.

A campanha contra Trótski

Segundo Trótski, o idealismo da Doutrina Proletária de Guerra, com a “sinceridade de seus erros”, estabeleceu “o germe da suficiência burocrática, desejosa de pensar e de obrigar os outros a pensar que ela é capaz de realizar milagres históricos em todos os domínios sem preparação especial e até sem bases materiais”.

José Stálin no período da Guerra Civil

Tukhachevsky, Frunze e Gusev eram teóricos da Doutrina, enquanto Vorochilov, José Stalin e Semion Boudienny eram seus principais apologistas. O centro dessa política durante a guerra civil era a cidade de Tsarítsin, onde os três últimos foram comissários políticos do Exército Vermelho e estabeleceram uma política de sabotagem aos especialistas militares colocados pelo governo soviético. Essa ação foi o fundamento da batalha do que viria a ser a burocracia soviética contra Trótski.

Porém, a política altamente disciplinada, centralizadora e de inclusão de oficiais militares no Exército Vermelho, sob direção de comissários políticos bolcheviques, era uma necessidade material do momento e não uma fórmula do “socialismo”. Pelo contrário, foi justamente o baixo nível cultural e econômico da Rússia que fez com que fosse necessário incluir um amplo setor de técnicos e especialistas nas mais diversas áreas da vida socioeconômica do país.

A questão estava colocada sob o ponto de vista material, concreto. Era preciso uma alta unidade nas forças de combate para deter o avanço dos exércitos contrarrevolucionários que invadiam a Rússia com o intuito de acabar com a revolução operária, pois uma tática de guerrilha, como pregavam os doutrinários, não seria capaz de vencer. Desse modo, era necessário conhecimento das táticas de guerra para não ser derrotado pelos exércitos capitalistas profissionais. A política de Trótski foi defendida por Lênin, que, em 1919, afirmou:

“Quando o camarada Trótski me informou recentemente que o número de oficiais do antigo exército empregados por nosso Departamento de Guerra chega a várias dezenas de milhares, percebi concretamente onde estava o segredo de usar nosso inimigo, como obrigar aqueles que se opunham ao comunismo a construí-lo, como construir o comunismo com os tijolos que os capitalistas escolheram lançar contra nós! Não temos outros tijolos! E, portanto, devemos obrigar os especialistas burgueses, sob a direção do proletariado, a construir nosso edifício com esses tijolos. Isso é o que é difícil; mas esta é a promessa de vitória”. (Conquistas e Dificuldades do Governo Soviético, 1919)

Na contramão, estava a política capituladora e idealista — com base em Tsarítsin, cidade comandada por Stalin — que deu início à campanha contra Trótski, sucessor natural de Lênin no comando soviético. Em sua autobiografia, “Minha Vida” (1930), Trótski explica que “na questão militar, a oposição assumiu uma forma mais ou menos definida durante os primeiros meses de organização do Exército Vermelho”. “Suas ideias fundamentais encontraram expressão na defesa do método eleitoral e em protestos contra o alistamento de especialistas, a introdução da disciplina militar, a centralização do exército e assim por diante”, esclarece.

“A oposição tentou encontrar alguma fórmula teórica geral para sua posição. Eles insistiram que um exército centralizado era característico de um estado capitalista; a revolução tinha que apagar não apenas a guerra posicional, mas também um exército centralizado. A própria essência da revolução era sua capacidade de se mover, fazer ataques rápidos e realizar manobras; sua força de combate foi incorporada em um pequeno destacamento independente composto de várias armas; não estava preso a uma base; em suas operações, contava totalmente com o apoio de uma população simpática; poderia surgir livremente na retaguarda do inimigo, etc. Em suma, as táticas de uma pequena guerra foram proclamadas as táticas da revolução. Tudo isso era muito abstrato e não passava de uma idealização de nossa fraqueza. A séria experiência da guerra civil logo desmentiu esses preconceitos. A superioridade da organização central e da estratégia sobre as improvisações locais, separatismo militar e federalismo, revelou-se muito cedo e muito claramente nas experiências da luta”. (idem)

“Não é de se espantar que meu trabalho militar tenha criado tantos inimigos para mim. Não olhei para o lado, afastei com uma cotovelada aqueles que interferiam no sucesso militar, ou na pressa do trabalho pisoteado pelos desatentos e estava ocupado demais até para pedir desculpas. Algumas pessoas se lembram dessas coisas. Os insatisfeitos e aqueles cujos sentimentos haviam sido feridos encontraram o caminho de Stalin ou Zinoviev, pois esses dois também nutriram feridas. Cada revés na frente levou os descontentes a aumentar sua pressão sobre Lenin. Nos bastidores, essas maquinações já eram administradas por Stalin. Memorandos foram apresentados criticando nossa política militar, meu patrocínio aos ‘especialistas’, o tratamento duro dispensado aos comunistas e assim por diante. Os comandantes que foram obrigados a renunciar ou frustrados ‘marechais’ vermelhos enviaram um relatório após o outro apontando a precariedade de nossa estratégia, a sabotagem pelo alto comando e muito mais”. (idem)

A burocracia e o fim da doutrina

A Doutrina Proletária de Guerra, porém, não teve uma grande sobrevida com o fim da Guerra Civil. Acontece que a situação econômica se estabilizou, a burocracia tomou conta do Estado operário e a questão internacional era — por ajuda dos erros cometidos pela própria burocracia — desfavorável à classe operária. Aos poucos, os apologistas da doutrina, como Stalin e sua camarilha, foram usurpando a classe operária do poder político e realizando grandes traições ao movimento comunista. Chegaram a ser elaboradas novas “teorias”, como a do “socialismo em um só país”, espécie de prostituição do marxismo, que expressava o desejo da burocracia nacional em defender seus interesses de casta apesar da luta política internacional do proletariado, colocada em segundo plano.

Se a “irmã mais velha” da Doutrina Proletária de Guerra foi mantida durante algum tempo como forma de controle da burocracia sobre a cultura, censurando e perseguindo artistas “não socialistas”, a própria doutrina militar não tinha mais como servir aos interesses dessa burocracia, uma vez que seu ponto principal era o “Estado-Maior internacional”, algo contrário ao “socialismo” nacional dos stalinistas.

Mikhail Tukhachevsky, importante comandante da Guerra Civil

Um dos poucos a continuar defendendo essa tese internacional foi Tukhachevsky, visto que Frunze havia morrido em 1925 e Gusev, assim como a camarilha stalinista, já a tinha abandonado, morrendo em seguida, no ano de 1933. Anos antes de sua execução pela burocracia, na época dos Grandes Expurgos, Tukhachevsky defendeu mais ferozmente sua teoria, observando as profundas derrotas que a política “nacional” da URSS tinha engendrado à classe operária mundial.

Segundo Trótski, apesar de ser um “exagero caricatural”, a ideia do “Estado-Maior internacional” estava à esquerda em relação à política oficial da burocracia do “socialismo em um só país”. Ela criou uma espécie de oposição não oficial dentro da burocracia militar soviética, o que resultou na prisão e execução de Tukhachevsky e seus aliados mais próximos.

Nesse sentido, com a ascensão da burocracia, o próprio Exército Vermelho sofreu a mesma sorte. O stalinismo, corrompendo a própria política leninista, criou um aparato burocrático gigantesco no Estado-Maior soviético, em que predominava uma casta privilegiada. De um lado, Lenin, em “O Estado e a Revolução”, defendia que “o proletariado só tem necessidade de um Estado que vá desaparecendo, isto é, um Estado que cedo comece a desaparecer e não possa deixar de desaparecer”. De outro, totalmente oposto, Stalin buscou fortalecer o Estado para manter os privilégios da burocracia que comandava — e, como qualquer Estado, seu fundamento era as forças armadas.

Os primeiros marechais da URSS: Mikhail Tukhachevsky, Semion Boudienny, Kliment Vorochilov, Vasili Blyukher e Alexander Yegorov. Apenas Boudienny e Vorochilov sobreviveram ao expurgo stalinista nos anos 1930

Ressurgiram as castas no exército (marechais), que se burocratizou; os operários foram desarmados, acabou-se com a essência das milícias populares e as forças armadas passaram a assumir puramente características de “segurança nacional”, abandonando a luta de classes internacional e assemelhando-se à burocracia armada dos Estados capitalistas.

“Os antigos adversários da utilização dos generais tinham-se tornado entretanto, eles mesmos, generais; os promotores do Estado-Maior internacional tinham-se juntado sob a égide ‘do Estado-Maior de um só país’; a doutrina da ‘segurança coletiva’ substituiu a da ‘guerra de classes’; a perspectiva da revolução mundial cedeu lugar ao culto do status quo. Era preciso, para inspirar confiança aos aliados hipotéticos e não irritar de maneira nenhuma os adversários, assemelhar-se o mais possível aos exércitos capitalistas e não se distinguir deles por preço algum”. (Trótski, Revolução Traída)

*As opiniões dos colunistas não reflete, necessariamente, as deste Diário

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