Um atentado a bomba em Brasília. Este é o caminho que os personagens de Branco Sai, Preto Fica tomam para destruir as estruturas do estado burguês brasileiro, simbolizado nos edifícios de Niemeyer na capital federal. O filme foi dirigido pelo cineasta goiânio Adirley Queiróz em 2014.
Revê-lo e refletir sobre ele, após a palhaçada escatológica do dia 8 de janeiro de 2023, é um interessante exercício, pois mostra uma ligação entre a premissa de atentado no filme e o espetáculo de estupidez que a TV nos entregou naquele dia.
O enredo conta a história de três personagens em momentos distintos do tempo. O DJ Marquim (vivido pelo ator e músico Marquim do Tropa) é paraplégico e dono de uma rádio pirata, de onde transmite músicas da soul, blues e funk. O ano é 2012.
Na mesma cidade, encontramos Sartana (o ator Cláudio Irineu Shokito), que vive e trabalha em uma espécie de ferro velho. Sem uma perna, o vemos consertar próteses mecânicas e outros materiais.
Por fim, temos Dimas Cavalanças (Dilmar Duraes), um viajante no tempo que vem de 2070 com uma missão: encontar Marquim e Sartana e colher provas de um crime da polícia contra a população de modo que o estado brasileiro, finalmente, seja julgado.
Apesar da premissa de fição científica, o filme é um documentário: Marquim e Shokito de fato relatam a violência que sofreram em março de 1986, em uma casa noturna de Ceilândia, cidade satélite de Brasília.
Os dois eram amigos e constumavam dançar nesse espaço, onde apresentavam coreografias, como era comum naqueles tempos. Em uma noite, a polícia invadiu o local, mandou os brancos embora e manteve os pretos. Na confusão, atirou e atropelou Marquim que ficou paraplégico e em Shokito, que perdeu a perna.
Uma abordagem policial bem diferente daquela que vimos no dia 8 de janeiro.
Das coreografias de 1986, no filme, temos contato por fotos que Cavalhanças vai juntando como provas do crime cometido pelo estado brasileiro contra os dois jovens que apenas estavam se divertindo.
Ao final do filme, lemos a frase: “da nossa memória fabulamos nóis mesmos”. Essa frase ajuda a entender a mistura entre documentário e ficção científica na representação do fato de violência policial, um grande mérito pela criatividade no uso dos materiais que o cineasta tinha à disposição.
A frase também nos avisa que as escolhas formais tiveram por objetivos contar a história e refletir sobre ela e sobre o futuro do ponto de vista daqueles que viveram os acontecimentos aterrorizantes.
A montagem e a misè-en-scene de Branco sai, Preto fica são primorosas. Na primeira, o diretor opta pela descontinuidade narrativa, que é fluida, eliptica e não segue uma linha de tempo progressiva. As lacunas são deixadas para que os espectadores as preencham.
Por exemplo, nunca vemos um encontro entre Sartana, Marquim e Cavalhanças, mas sabemos que ele aconteceu porque Sartana retrata o encontro em desenhos.
Outro exemplo são as provas coletadas por Cavalhanças ao longo de suas viagens com a “máquina do tempo’. Elas incluem depoimentos que são usados ao longo do filme, no qual Marquim e Shokito se tornam narradores em primeira pessoa e em off.
No caso da mise-en-scene, a construção de cenários distópicos e decadentes, ao estilo de Blade Runner ou Matrix, não pareceu ser necessária. O diretor apenas usou locações reais existentes em Ceilândia, cidade satélite de Brasília, em oposição à arquitetura da capital que, neste caso, nunca aparece. É também uma opção mais próxima do documental.
Na história como ficção, esta oposição retrata uma espécie de apartheid dirigido por um governo ditatorial. Para entrar em Brasília, os moradores de Ceilândia precisam de um passaporte especial.
No caso dos objetos, a máquina do tempo de Cavalhanças, por exemplo, é mínima. Trata-se de um contêiner vazio, uma espécie de palco fechado, sem artifícios espetaculares, porém que está de acordo com a proposta estética do filme. Até mesmo como contraponto aos similares hollywoodianos.
Ao final, tudo indica que a destruição de Brasília foi arquitetada pelo viajante do tempo, que deu aos dois amigos os planos para a realização: uma bomba feita com ruídos, músicas e sons de Ceilândia, acionada por frequência.
Diante dos acontecimentos recentes, é interessante perceber como este filme contemporâneo, ao contar a história de Marquim e Shokito, também mostra a produnda crise do capitalismo à qual estamos todos submetidos e que não é superada, projetando um futuro pior.
A encenação de uma destruição de Brasília é simbólica da necessidade profunda de mudança que a atual conjuntura histórica parece impor e que o filme já captava em 2014 (e que já estava presente em 1986).
Chega a ser desolador que esta tentativa de mudança tenha sido perpetrada pela direita reacionária, via indivíduos alienados, que estão apenas apaixonados por uma mistificação messiânica que assumem como realidade e que não têm nada para colocar no lugar. Eles estão apaixonados pela mobilização em si mesma e nada mais.
Porém, o espírito revolucionário está mais do que acordado, como lava em vulcão adormecido. Falta a esquerda para por em marcha o processo.
* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário