O presidente da Argentina, Javier Milei, tem sido comparado ao ex-presidente golpista, Jair Bolsonaro, sobretudo pela esquerda brasileira. Ao sítio GGN, o colunista Fernando Castilho escreveu que “Bolsonaro é Milei” (19/12/2023), refletindo uma opinião corrente na esquerda brasileira demasiadamente abstrata, que considera a ideologia de ambos, mas não a composição social dos direitistas, tendo reflexos na força com que a população é atacada.
Um aspecto importante a se destacar sobre o governo argentino é que o gabinete ministerial de Milei evidencia a coesão da burguesia argentina e do imperialismo. Postos chave como o Ministério da Economia e da Segurança, por exemplo, foram entregues a aliados do ex-presidente Maurício Macri: respectivamente o ex-presidente do BC argentino, Luis “Toto” Caputo, e a candidata macrista derrotada nas eleições presidenciais deste ano, Patricia Bullrich.
O candidato a vice-presidente na chapa de Patricia Bullrich, Luis Petri, foi também empossado por Milei em outro posto do primeiro escalão governamental: o Ministério da Defesa.
Até mesmo peronistas ganham destaque no governo Milei. Embora em um segundo escalão do governo, os ministros do Interior, Guillermo Francos, e da Infraestrutura, Guillermo Ferraro, revelam que partes do peronismo também estão com Milei. Francos foi representante do governo Alberto Fernández no Banco Interamericano de Desenvolvimento, ao passo que Ferraro foi chefe dos conselheiros no Senado de Antonio Cafiero, o histórico líder peronista. Finalmente, no dia 29 de novembro, o presidente argentino anunciou Daniel Scioli (do Partido Justicialista, o mesmo da ex-presidente Cristina Kirchner) como embaixador do Brasil.
Se no aspecto interno a união da burguesia em torno de Milei encontra-se clara pelo seu gabinete, fora do país há também um apoio ao arauto do neoliberalismo turbinado. Um dos principais porta-vozes do imperialismo no Brasil, o Estado de S. Paulo, por exemplo, chegou a mentir descaradamente para acusar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de ajudar o então candidato peronista Sergio Massa, ou, como disse o jornal golpista, para “barrar avanço de Milei” (“Lula atuou em operação para banco emprestar US$ 1 bilhão à Argentina e barrar avanço de Milei”, Vera Rosa, 4/10/2023), em uma escancarada demonstração de apoio a alguém tido como igual a Bolsonaro (o que é verdade nos discursos, mas definitivamente não na base social de cada um).
Há pouco mais de três anos, no dia 15 de dezembro de 2020, o então presidente Bolsonaro, anunciava aos trabalhadores da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp) sua oposição à privatização do patrimônio público e criticava o defensor da medida, o então governador paulista, João Doria (PSDB). Recorrendo à sua eloquência habitual, Bolsonaro criticava o tucano e garantia aos presentes em seu comício, realizado no entreposto, afirmando que “nenhum rato vai querer sucatear isso aqui para privatizar para os seus amigos […] Enquanto eu for presidente da República, essa é a casa de vocês. Queriam privatizar para o amiguinho se dar bem. Esse amiguinho vai continuar andando por aí com sua calcinha apertada, que não será privatizado”, disse, em referência clara a Doria.
Ocorre que a companhia pública constava no plano de privatização montado pelo então secretário especial de desestatização do governo federal, Salim Mattar, indicando que o ex-presidente pretendia, sim, privatizar a Ceagesp. O que impediu Bolsonaro não foi outra coisa, mas a presença de uma base social, fundamental para sua ascensão ao cargo máximo da nação, porém a fonte também dos atritos do ex-presidente com a parcela mais poderosa da burguesia brasileira e do imperialismo.
Segundo dados do Sindicato de Hotéis, Restaurante, Bares e Similares de SP, apenas na capital paulista, existem mais de 12,5 mil restaurantes. São estabelecimentos comerciais de uma pequena burguesia que dão ao bolsonarismo uma base social real e permanecem ligadas ao ex-presidente brasileiro, mesmo com a perseguição política desencadeada pelo regime.
Ao mesmo tempo em que essa base real dá força a Bolsonaro, é também um entrave para o fascista implementar uma política neoliberal plena, tal como desejada pelos setores mais poderosos da burguesia e o imperialismo. O caso Ceagesp foi a mais flagrante evidência do fenômeno, mas mesmo durante sua passagem pelo Palácio do Planalto, Bolsonaro era criticado pelo PSDB, por exemplo, por ser menos privatista do que FHC.
É preciso lembrar ainda que casos como a Reforma da Previdência, o Marco Legal do Saneamento e a privatização da Eletrobrás mostram que, em seu aspecto mais criminoso contra o País, Bolsonaro não sofria oposição alguma. Assim já se projeta para ser como Milei, com a vantagem de que o argentino não tem a base social de Bolsonaro.
Levado à Casa Rosada (sede do governo argentino) principalmente pela burguesia, o economista de hábitos tão extravagantes quanto falar com cachorro morto é perfeito para a classe dominante do país vizinho: sem uma base social para atender, pode se dedicar a implementar integralmente o plano de ataque à economia argentina desejado pelo imperialismo, podendo também reprimir “holisticamente” a população em caso de revolta. Se a repressão falhar, é possível ainda derrubá-lo sem grandes traumas, o que também é um fator importante para os planos da burguesia.
O Brasil viu esse fenômeno com o ex-presidente Fernando Collor e também o ex-governador fluminense Wilson Witzel, derrubados sem oposição da população. Muito diferente, por outro lado, das tentativas de perseguição a Bolsonaro, que terminavam com mobilização nas ruas em defesa do ex-presidente, demonstrando sua liderança perante um setor da população, o que o tornou também difícil de ser removido pelos “anti-bolsonaristas” da direita.
As diferenças entre Bolsonaro e Milei são, acima de tudo, um alerta à esquerda brasileira. Os ditos opositores do bolsonarismo e hoje apoiadores de Milei estão colocando às claras que a oposição ao líder da extrema-direita nacional deve-se não ao que ele tem de mais criminoso e repressivo, mas justamente ao fato de não ser tanto quanto o argentino pode ser, o que já está claro a um bom observador e demonstra a importância, por exemplo, de um combate decidido à direita, inclusive no próprio governo federal. Nunca foram opositores em questões fundamentais aos trabalhadores.