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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Música brasileira

Algumas palavras sobre a Bossa Nova e o Tropicalismo

Considerações sobre João Gilberto e o Caetano Veloso

João Gilberto é, sem dúvida, um dos principais artistas da Bossa Nova, quem, com seu modo de cantar, demarcou na MPB dois estilos de interpretação bastante distintos. Para verificar isso, basta comparar as vozes portentosas de Vicente Celestino, cantor de operetas, ou Silvo Caldas, cantor de serestas, com as vozes posteriores a João Gilberto, explicitamente influenciadas por ele, tais quais Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda, Jorge Ben Jor e Roberto Carlos.

Cantar no estilo de João Gilberto envolve, pelo menos, estes procedimentos: (1) reduzir a instrumentação ao máximo e, se possível, apenas ao violão; (2) reduzir a canção ao perfil melódico; (3) reduzir esse perfil ao máximo, aproximando-o da fala, mantendo-se o mínimo de ritmo e melodia, o suficiente para o canto não se identificar totalmente com o fluxo prosódico. Isso se confirma com facilidade escutando-se, atentamente, sua interpretação de “Com açúcar com afeto”, de Chico Buarque, realizada na gravação ao vivo, 1985, no 19º Festival de Jazz de Montreux.

João Gilberto repete a canção três vezes; na primeira, ele praticamente declama a letra, pontuando-a com acordes no violão; da segunda repetição em diante, ao longo da interpretação, o cantor transforma, moderadamente, as curvas entoativas em curvas melódicas e os acentos prosódicos, em acentos rítmicos. Enquanto proposta estética, ela pode ou não funcionar bem, ser ou não ser agradável de escutar…, entretanto, não é possível concordar quando, eventualmente, a posição de João Gilberto, conforme parte da crítica especializada, identifica-se com imagens ideais da música popular brasileira, porventura, da própria da canção.

Enquanto linguagem, em sua manifestação social, a performance musical da canção popular pode ser analisada em função de variados pontos de vista, entre eles: (1) a criatividade dos arranjos; (2) as propostas rítmicas; (3) os timbres de voz; (4) a encenação teatral dos músicos; (5) o valor literário das letras; (6) o valor musical das melodias; (7) as relações semióticas entre melodia e letra; (8) as relações linguísticas entre fala e canto; (9) as propostas ideológicas etc. Nessas circunstâncias, portanto, quando João Gilberto destaca apenas alguns desses aspectos, isso significa, antes de tudo, não a idealização ou depuração de uma linguagem específica, mas, contrariamente, reduções, algumas delas, bastante comprometedoras.

Derivar o canto da fala, feito faz João Gilberto explicitamente em “Com açúcar com afeto”, ou sutilmente, igual em grande parte de seu repertório, deveria significar insistir nas características mínimas para se realizarem canções e não, o máximo. Em outras palavras, com pouco menos de melodia e ritmo, seu modo de cantar se revela modos de falar; ora, isso parece se distanciar da essência da canção, com os resultados não sendo, necessariamente, satisfatórios.

Investir em arranjos harmônicos intrincados, ensaiar compulsivamente horas a fio, exigir silêncio absoluto por parte da audiência, desligar o ar condicionado evitando as desafinações do instrumento… tudo isso para João Gilberto, no banquinho e com seu violão, cantar versos tais quais “é melhor ser alegre que ser triste / alegria é a melhor coisa que existe”, “fraco de Lobo é ver o Chapeuzinho de maiô”, “o pato vinha cantando alegremente / quem quem quem / quando o marreco sorridente / quem quem quem”, revelando-se, dessa maneira, excesso de trabalho para resultados bastante discutíveis.

Em vista disso, por mais que se justifiquem as interpretações e harmonias criativas, o resultado performático de João Gilberto, na maioria das vezes, é insuficiente; sua interpretação, por exemplo, de “Da cor do pecado”, de Bororó, no álbum “Eu sei que vou te amar”, ao vivo, 1994, soa soturnamente, com a sensualidade da letra submersa em tons lúgubres, feito se cantada por fantasmas vindos do além.

Desse ponto de vista, se João Gilberto realiza o mínimo da canção, como seria realizar o máximo? Para responder, é preciso sair dos limites territoriais da MPB, inserindo-a na canção pop internacional, que é como ela busca se colocar, pelo menos, desde a segunda metade do século XX, enquanto linguagem musical. Feito isso, qual seria o máximo da canção? Sem dúvida, seria Frank Zappa; sugere-se escutar atentamente três faixas do álbum “Roxi & Elsewhere”, 1974: “Village of the Sun”; “Echidna’s arf (of you)”; “Don’t you ever wash that thing?”. As três canções estão dispostas em sequência; na versão em CD, não há silêncio entre elas; tudo se passa numa performance unificada, durando por volta de 18 minutos.

Trata-se da banda Mothers of invention, cuja formação, basicamente, é esta: duas guitarras; um baixo elétrico; dois teclados elétricos; um set de percussão complexo, formado por vibrafones, campanas etc.; duas baterias; naipe de metais com trompete, trombone, saxofone e flauta; entre os principais vocalistas, está o próprio Zappa, quem toca guitarra com virtuosismo. Além disso, Zappa faz as composições, os arranjos, a regência do grupo; no estúdio, ele mixa, edita e produz os álbuns, vale lembrar, por volta de oitenta, em cinquenta e três anos de vida e, aproximadamente, trinta anos de carreira.

Além da canção, todos os instrumentos solam, inclusive Zappa, a percussão e as duas baterias, com os solos improvisados sobre temas distintos; Zappa não precisa de truques para cantar, ele alcança todas as notas sem ser virtuoso no canto; ele canta enquanto toca guitarra, não sendo necessário a banda tocar acanhadamente para o vocalista se destacar. Os músicos da banda, por suas vezes, não assumem as tristes figuras de músicos de fundo, feito acontece nos trabalhos de Roberto Carlos, Maria Bethânia ou João Gilberto, mas contribuem ativamente, seja nas gravações em estúdio, seja em apresentações ao vivo, colaborando com a performance musical em todos os aspectos, tanto os puramente musicais, quanto os próximos da encenação teatral.

Nessa dimensão musical, João Gilberto sequer consegue tocar em parceria com outros instrumentistas; sua lógica mínima e imutável lida mal com músicos vivos, que gostam de participar da música; caso a canção brasileira seja inserida na canção internacional, conforme o próprio João Gilberto se posiciona, tocando com Stan Getz e Frank Sinatra, contata-se facilmente não haver na MPB, infelizmente, cancionistas ou músicos com concepções musicais semelhantes às de Frank Zappa. No Brasil, quem poderia se aproximar de Zappa é Arrigo Barnabé; entretanto, Arrigo não toca piano com o virtuosismo com que Zappa toca guitarrista; Arrigo compôs pouquíssimos álbuns, repetindo insistentemente as mesmas canções; o álbum “Clara Crocodilo”, de 1980, vem sendo reprisado exaustivamente em shows há mais de 43 anos.

Quanto ao Tropicalismo, na MPB ele é, sem dúvida, um movimento bastante próximo do aspecto performático da canção, ou melhor, da concepção de canção não somente enquanto melodia e letra, mas também como encenação musical. Dessa perspectiva, em que a canção não é linguagem pensada separadamente da música, mas faz parte dela, o Tropicalismo apenas tangenciou superficialmente a concepção performática de canção, isso por um motivo simples e incrivelmente óbvio: nem Caetano Veloso, nem Gilberto Gil, os líderes emblemáticos do movimento, têm a devida formação em música.

Sem conhecimentos musicais para desenvolver e revolucionar a MPB, os tropicalistas terminam por ceder à indústria cultural e, sem forças para propor mudanças, pois a cultura de massas é reacionária, antes diluíram movimentos de canções estrangeiras, omitindo ou atenuando possíveis inovações. Em outras palavras, os tropicalistas fizeram música para tocar nas rádios, evitando maiores problemas com a moral provinciana da família burguesa brasileira; para verificar isso, sugere-se observar as versões do reggae, do rock e da música de vanguarda feitas por eles

O reggae é também luta pela legalização da maconha, basta observar shows, entrevistas e capas de álbuns de Peter Tosh e Bob Marley, nos quais ambos, raramente, não aparecem fumando gigantescas bombas da erva, enquanto nos reggaes de Gil e Caetano, nada se fuma; o rock inclui, em sua legenda, sexo, drogas, além de longos solos de guitarras e teclados, já nos supostos rocks de Gil e Caetano, nada se diz daqueles temas e práticas, não havendo solos de guitarra nem de teclado. Por fim, quando tropicalistas buscam pretensiosamente dialogar com as artes de vanguarda, os resultados são simples demais, para não dizer, deploráveis; comparando-se a versão musical de Caetano Veloso da poesia concreta “O pulsar”, de Augusto de Campos, do álbum “Velô”, 1984, com a versão de Luciano Berio do poema “Give me a few words for a Woman”, de Markus Kutter, em “Sequência III”, para voz feminina, verifica-se que, enquanto Berio explora várias potencialidades prosódicas, sonoras e musicais da poesia, colocando música experimental ao lado de poesia experimental, Caetano oscila entre dois intervalos musicais básicos – oitava e quinta –, sincronizados com duas imagens evidentes do poema visual “O pulsar” – o círculo e a estrela –, enquanto declama os versos com sua voz canhestra.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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