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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

A poesia de Marcelo Sahea

A engenhosidade literária sob versos aparentemente simples

Conheci Marcelo Sahea pessoalmente no lançamento do livro “Nada a dizer”, de sua autoria, editado em 2010 no selo [e]xperimental, dirigido na época por mim, pelo José Roberto Barreto, editor da Annablume, e pelo Wanderley Mendonça, editor da Demônio Negro. Inteirei-me de sua poesia no Sebo do Bactéria, localizado na Praça Roosevelt; lá encontrei os livros de poemas “Carne viva”, de 2003, e “Leve”, de 2006. Em 2008, estivemos juntos no projeto “Fome de formas”; o Marcelo Sahea escreveu o prefácio do meu terceiro livro de poesias, “Concretos e delirantes”, também lançado em 2008.

Na maioria das vezes, Sahea é poeta experimental; seus trabalhos se concentram na poesia visual, vídeo-poesia, poesia performática e, mesmo quando faz poesia verbal, Marcelo é experimentalista, buscando sempre ir além do verso. Outras vezes, porém, sua poesia parece bastante simples… escrevi “parece simples”, pois, em muitos poemas, a simplicidade esconde a sutileza que, por sua vez, esconde a engenhosidade literária. Para tratar disso, escolhi o poema “Como lua, sendo sua?”, publicado em “Leve”:

“como lua / sendo sua? // como ponto / tendo pontos? // como branca / se menstrua? // como santa / sendo tantas? // como nua / sendo manta? // como esfria / se estua? // como grão / se se agiganta? // como sua / sendo lua?”

O poema de Sahea lembra a canção “Quem há de dizer”, de Lupicínio Rodrigues; na canção, o boêmio enamorado admira a amada, apesar da atenção dela, enquanto profissional de cabaré, dispensada aos demais homens presentes. Nos versos finais, conformado com as condições do namoro, o cantor afirma “Ela nasceu com o destino da Lua / Para todos que andam na rua / Não vai viver só para mim”. Ora, logo na primeira estrofe, Sahea indaga sobre a relação entre algo de todos, isto é, a Lua, e a posse individual – “como lua / sendo sua?” –, argumentando semelhantemente à canção de Lupicínio Rodrigues. No verso, contesta-se quem toma, só para si, a Lua de todos; parafraseando o poema, a argumentação é esta: se é sua, não pode ser Lua, porque se é Lua, não pode ser sua. Contudo, em vez de fazer da Lua metáfora da pessoa amada – na canção de Lupicínio, a Lua é metáfora da amante –, Sahea, sem se desviar de tematizações eróticas, nas quais a mulher estaria presente – “como branca / se menstrua?” –, encaminha a poema para significações indefinidas.

Entre tais significações, o erotismo talvez seja tema evidente; é possível mostrar como, ao longo dos versos, na medida em que surge o erotismo, ele também se dispersa em outras possibilidades de leitura. No início do poema, há reflexões sobre a Lua, concentrando-se no significado satélite da Terra, todavia, na terceira estrofe – “como branca / se menstrua?” –, é possível ler a Lua personificada devido à atribuição de traços femininos ao satélite, tais quais menstruar, insinuando-se nos versos o corpo da mulher, cujo erotismo se torna evidente nos versos seguintes.

No quarto verso – “como santa / sendo tantas?” – acrestam-se, à admiração expressa no início, saberes derivados, entre outras práticas possíveis, da sexualidade. No verso, o poeta aparece enredado entre a santidade e o sexo; verifica-se outra remissão à mulher de todos, e não de apenas um. O erotismo, entretanto, expressa-se com clareza nos próximos versos: (1) em “como nua / sendo manta?”, a nudez cobre o poeta – a mulher nua é manta para outro corpo –; (2) em “como esfria / se estua?”, o calor pode ser lido no tema do erotismo; (3) em “como grão / se se agiganta?”, corpos ou partes de corpos crescem – novamente, isso pode ser lido na tematização erótica, remetendo ao entumecimento dos orgãos genitais –; (4) nos versos “como lua / sendo sua?”, “como branca / se menstrua?”, “como santa / sendo tantas?”, “como nua / sendo manta?” e “como sua / sendo lua?”, a tematização erótica permite considerar o “como” não apenas na função de advérbio interrogativo, mas na função de verbo, quer dizer, o verbo “comer” conjugado no presente do indicativo “eu como”, quando “comer”, outrossim, significa “manter relações sexuais”.

Embora a tematização erótica esteja presente em muitos versos, algumas estrofes podem, isoladamente, desencadear outros temas além do erotismo; a segunda estrofe – “como ponto / tendo pontos?” – e a sétima – “como grão / se se agiganta?” – são abstratas o suficiente para permitir outras leituras. Enquanto na segunda estrofe se trata de grandezas descontínuas, mencionando-se pontos entre pontos, na sétima estrofe, no agigantamento do grão, narra-se o processo contínuo de crescimento. Dessa maneira, em meio às descontinuidades do ponto sendo pontos – ou seja, entre os limites estabelecidos pela unidade e a multiplicidade –, e em meio às continuidades do grão agigantando-se – isto é, entre os limiares do pequeno ao grande –, o poema se abre, devido à generalidade dos conceitos e processos propostos, para variadas interpretações; uma vez que as relações entre os temas e as palavras permitem ler metáforas, o ponto sendo pontos ou os grãos agigantando-se poderiam metaforizar quase tudo.

A sexta estrofe – “como esfria / se estua?” – é semelhante às segunda e sétima estrofes em seu grau de abstração entre o frio e o quente; além expressar grandezas descontínuas – os limiares entre esfriar e estuar –, o verso remete à sensibilidade, podendo metaforizar qualquer estado de ânimo.

Contudo, é interessante notar no poema que tal dispersão semântica encontra, ao se manifestar em palavras, contensões prosódico-fonológica de forma bastante regular, pois, com exceção do verso “se se agiganta”, todo o poema é construído em dísticos – estrofes de dois versos –, com versos trissílabos – versos formados por três sílabas poéticas –, todos eles com a mesma cadência fraco-fraco-forte – em termos de pés de verso, o anapesto –.

Verifica-se, no poema, a dispersão dos conteúdos semânticos expressando-se em contensão prosódico-fonológica, cabendo indagar, portanto, se conteúdos orientados para a dispersão semântica não estariam melhor expressos em regimes de dicção menos regulares; em outras palavras, não seria melhor utilizar estrofes e versos livres para expressar aquele conteúdo?

Se o poema tratasse apenas da dispersão, talvez; todavia, o estabelecido nele é a tensão entre temas definidos e as possibilidades de dispersão em outros temas. Desse ponto de vista, a escolha da dicção concentrada em dísticos e anapestos – exceto o décimo quarto verso – encontra vias prosódicas adequadas para expressar tal tensão, em razão da correlação “semântica dispersa vs. prosódia concentrada” assemelhar-se à correlação entre os temas dispersos e os definidos.

Por fim, uma vez que nos significados do texto há negação da concentração rumo à dispersão do sentido, caberia fazer esta última indagação: nessa entonação, não haveria também uma versificação capaz de negar a concentração prosódica, rumando, assim, para sua dispersão? Isso não confirmaria, novamente, o modo de ser tenso e paradoxal da totalidade do poema?

O verso exceção faz isso; quando em “se se agiganta” a forma fraco-fraco-forte é substituída pela forma fraco-fraco-fraco-forte – em termos de teoria do verso, coloca-se o peão quarto no lugar dos anapestos –, há, sutilmente, a negação da concentração prosódica, derivando-se para outras possibilidades entoativas além daquela afirmada sistematicamente. Aliás, nesse verso expandido se expressa, em termos prosódicos, o mesmo dito no conteúdo, o agigantar-se do significado agiganta-se no verso mais extenso do poema.

Na literatura brasileira contemporânea, Marcelo Sahea não é o único poeta aparentemente simples, contudo, nada como análises de sua poética, mesmo ligeiras, para revelar a engenhosidade literária. Outros poetas brasileiros são semelhantes; apenas para citar alguns, lembro-me de Paulo Leminski, Cacaso, Chacal, Ana Cristina César e Oswald de Andrade, cuja simplicidade pode ser efeito de sentido poético, entretanto, nunca é desconhecimento ou alienação dos potenciais da linguagem.

Artigo publicado, originalmente, em 20 de junho de 2023.

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