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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

A poesia de Edson Cruz

Nacionalismo crítico e língua portuguesa na poesia contemporânea

              Das coisas herdadas dos nossos pais, herdei o álbum duplo – dois LPs – “Histórias da música popular brasileira”, de Silvio Caldas, gravado ao vivo. A música de abertura é o samba “Onde o céu azul é mais azul”, da autoria de João de Barros, Alcir Pires e Alberto Ribeiro; eis a letra da canção:

              “Eu já encontrei um dia alguém / Que me perguntou assim, iá, iá, / O seu Brasil o que é que tem / O seu Brasil onde é que está? / Onde o céu azul é mais azul / E uma cruz de estrelas mostra o Sul / Aí, se encontra o meu país / O meu Brasil grande, e tão feliz // E tem junto ao mar palmeirais / No sertão seringais / E no sul verdes pinheirais / Um jangadeiro que namora o mar / Verde mar, a beijar brancas praias sem fim / Quando baila o ar / Um garimpeiro que lá no sertão / Procura estrelas raras pelo chão / E um boiadeiro que tangendo os bois / Trabalha muito prá sonhar depois // E se é grande o céu, a terra e o mar / O seu povo bom não é menor / Mas o que faz admirar / Eu vou dizer guarde bem de cor / Quem vê o Brasil que não tem fim / Não chega saber porque razão / Este país tão grande assim / Cabe inteirinho em meu coração.”

              Embora não seja tão famoso quanto “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, ou “Aquarela Brasileira”, de Martinho da Vila, quando se trata de sambas de exaltação do Brasil, eu prefiro “Onde o céu azul é mais azul”.

              Quando o nacionalismo é burguês, boa parte dos valores exaltados serve, predominantemente, para encobrir a luta de classes e alienar o proletariado. Os sambas mencionados podem ser lidos assim, principalmente meu preferido; nesse samba, todos os brasileiros são felizes, com jangadeiros, garimpeiros e boiadeiros dividindo o paraíso, suas riquezas e, não havendo conflitos, nem parece o mesmo Brasil da prosa de Graciliano Ramos. Contudo, diante do imperialismo cultural, os valores nacionais podem ser convocados para combater dominações estrangeiras; nessa luta, a utopia do samba citado pode se tornar socialismo, em que o homem, regido não pela exploração do trabalho alheio, vive em harmonia e pacificamente com a natureza.

              Hoje vou falar do poeta Edson Cruz e de seu “O canto verde das maritacas”, lançado em 2016. A capa do livro é verde, os pássaros são maritacas… seria Edson Cruz um poeta nacionalista? Se nacionalismo for fazer apologias de jagunços, bandoleiros e beatos reacionários, desse nacionalismo, certamente, o Edson Cruz está bem distante; na poesia do Edson, o nacionalismo transcende a apologia de estereótipos regionais para se concentrar no papel político da língua portuguesa. Para verificar isso, vale a pena ler o poema “Lágrimas”:

              “Ano Bom Arzila Ormuz Azamor / Ceuta Flores Agadir Safim / Tanger Acra Angola Mogador // Aguz Cabinda Cabo Verde Arguim / São Jorge da Mina Fernando Pó / Costa do Ouro Portuguesa Zanzibar // Melinde Mombaça Moçambique / Guiné Portuguesa Macassar / Quíloa São Tomé e Príncipe Mascate // Fortaleza de São João Baptista de Ajudá / Socotorá Ziguinchor Bahrain Paliacate / Alcácer-Ceguer Bandar Abbas Cisplatina // Ceilão Laquedivas Maldivas Baçaim / Calecute Cananor Chaul Chittagong / Cochim Cranganor Damão Bombaim // Dadrá e Nagar-Aveli Damão Mangalore / Diu Goa Hughli Nagapattinam / Coulão Thoothukudi Salsette Masulipatão // Surate Nagasaki Timor-Leste / São Tomé de Meliapore Mazagão / Malaca Molucas Guiana Francesa // Nova Colónia do Sacramento Bante / Brasil / Macau // Portugal / Oh sal que corrói a pele de nossas almas.”

              O poema de Edson Cruz, embora não se resuma ao catálogo, é uma lista de palavras; em termos das figuras de linguagem, o poeta faz enumeração. Na história da arte, inventários são comuns; no cinema, Peter Greenaway é mestre em fazê-los, seus filmes são obsessivamente baseados neles; na pintura, Pieter Bruegel e Giuseppe Arcimboldo compuseram coleções de imagens; “Lágrimas” é uma lista de palavras. Os catálogos não são apenas ordens de coisas; tais ordens expressam fazeres seletivos; em todo inventário são definidos campos semânticos, construídos nas relações entre seus componentes e os critérios unificadores.

              Outrossim, quando poemas são enumerações, eles são formados por palavras, cujas expressões acústicas, alinhadas em versos, realizam-se prosodicamente, sendo a prosódia, na poesia, o próprio verso; dito de outro modo, além de seus significados, versos formados por lista de palavras são fluxos entoativos transformados em poesia sonora, isto é, a poesia baseada predominantemente na fonética da língua utilizada. Desse ponto de vista, em “Lágrimas”, no fluxo semântico-entoativo expressa-se, antes de tudo, a língua portuguesa em sua especificidade prosódico-fonológica, o nível da língua em que a prosa se transforma em poesia; vale a pena ler “Lágrimas” em voz alta somente para ouvir a língua portuguesa!

              No poema, trata-se da enumeração dos lugares pelos quais os portugueses espalharam a língua portuguesa no mundo, discutindo, justamente, tal geopolítica formada por meio da língua, da qual poucos falantes têm consciência. Aludindo ao último verso do poema “Mar português”, de Fernando Pessoa, cujos versos se resumem exclusivamente aos feitos dos portugueses, em “Lágrimas” Portugal deixa de ser o centro linguístico para se tornar outro membro do grupo, identificando-se o sal que nos corrói a alma com a própria língua portuguesa, meio de comunicação e expressão de nossa subjetividade. Eis o poema de Pessoa:

              “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar! // Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena. / Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor. / Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu.”

              Por fim, em “Lágrimas” a pátria não é simplesmente a língua; as palavras catalogadas são lugares, todos eles dispersos pelo planeta, sendo, portanto, culturas distintas, muitas pátrias, ao que tudo índica, carentes das devidas noções políticas e semióticas decorrentes dessa comunidade formada linguisticamente.

              Além das formas extensas, Edson Cruz também compõe poemas concisos, dos quais eu escolhi cinco:

              “Sabiá trinando. / Parece que a vida toda / Carmim se aveluda.”

              “Zunido de cigarras. / Infância estourando / Meus tímpanos.”

              “As copas das árvores / Varrem as nuvens do céu. / Bafejo de zéfiro.”

              Buda

              “Um tigre de ternura / com o Sutra do Lótus / em riste.”

              Psiu de luz

              “Milagres latejam / na noite escura. / Vaga-lumes / dando um rolê.”

              Se no primeiro poema, “sabiá trinando”, Edson se vale de figuras recorrentes no imaginário brasileiro, aparecidas em poemas e canções quase sempre significando a brasilidade, nos demais poemas isso não se dá. Os títulos de seus livros – “Ilhéu”, “Sortilégio”, “O canto verde das maritacas”, “Negrura” – remetem ao Brasil; muitos de seus poemas são revestidos por pessoas, tempos e espaços brasileiros, contudo, sua militância pela língua vai mais longe, com o poeta valendo-se do português para falar de outros temas, entre eles, o budismo. Nesse budismo em língua portuguesa, o sabiá do primeiro poema é levado para dentro do haikai.

              Outro tema caro ao Edson Cruz é o tempo e sua passagem. Edson não luta nem se revolta contra a morte, ele negocia com o tempo, não semelhantemente a Fausto, trocando sua alma por simulacros da juventude, mas desviando-se dela, olhando-a de soslaio para mirar outras possibilidades e viver outras mitologias. Eis os poemas “Relógio de areia”, “Zoom” e “Ovo”:

              Relógio de areia

              “Meu filho de três anos / adora manipular ampulhetas. / Observa atentamente o relógio / de areia / como quem assiste à dissolução / de um império. / Ele é o senhor do tempo / e nem imagina o quanto / me faz barganhar / com Tânatos.”

              Zoom

              “Carpe diem. / A vida é / Curta. // Carpa riem. / O azul do dia / zune. // O céu refletido / nas águas. / Lume.”

              Ovo

              “como voltar a um lar / que nem sequer existiu // fazer o movimento pendular // recuperar a mãe / que me pariu”

              O livro “O canto verde das maritacas” é encontrado no site da editora Patuá, neste endereço: https://www.editorapatua.com.br/

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