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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Literatura brasileira

A poesia de Andréia Carvalho Gavita

A presença do esoterismo na literatura brasileira contemporânea

Comparar poética e mitologicamente as mulheres com o elemento terra, salientando-se a geração da vida por meio das flores, dos frutos, enfim, da vegetação, costuma ser metáfora bastante sugestiva, todavia, não se pode restringir a mulher somente a alguns aspectos telúricos, isto é, voltados para a materialidade da terra, reservando-se aos homens o pensamento olímpico, quer dizer, a metafísica; nessas circunstâncias, se Isadora Duncan dançando descalça é bastante telúrica, Hildegard Von Bingen é tão doutora da igreja quanto Alberto Magno ou São Tomás de Aquino.

A poesia da Andréia Carvalho Gavita pertence a esses dois universos, ela é substancial ao celebrar as festas da terra e da carne e é formal na elaboração da filosofia esotérica; porque as duas as posturas surgem complexificadas nos versos, valendo-me de seus poemas, começo a apresentar aqueles em que há ênfase na celebração.

Na mitologia egípcia, em linhas gerais, Set oscila entre destruir e proteger; Set assassina o irmão Osiris e prejudica o sobrinho Hórus na sucessão ao pai, entretanto, Set protege Rá, identificado ao Sol, durante o ciclo noturno. As religiões são sempre polêmicas; com o passar dos anos, tais polêmicas tendem a crescer nas muitas interpretações sofridas ao longo da história, por isso mesmo, dificilmente se encontram mitos originais, mas variações mitológicas de temas semelhantes. Se para a história e a antropologia os atributos dos deuses da antiguidade devem ser rigorosamente examinados, para a poesia moderna, isso não tem a mesma importância, uma vez que poetas inventam atributos, deuses e mitologias a todo momento.

Em sua mitologia, Gavita associa Set à violência, escuridão, guerra, deserto, serpentes e, até mesmo, ao Satã do satanismo contemporâneo; é esse Set, exatamente, fruto das leituras modernas da história das religiões, a quem Andréia se refere neste poema:

“infusão de set”

teus passos de angostura / deitarei // no sudário de ervas / da cova dos reis // o pulso mumificado / entre linhos e visgos // na terra messalina / que tudo doa / messias / assassinos / & aromas // além de agostos / de assopros / de angústias // em teus passos de angustura / rainha / vendada / maltrapilha / deitarei

O poema está no início do livro “Camafeu escarlate”, publicado pela Lumme em 2012; “infusão de set” é o terceiro poema, no qual, feito nos dois anteriores – o nº 1, sem título, e “ouro de ouroborus” –, tematizam-se ritos de transformação. Por justamente estarem no início dos 40 poemas do volume, os versos podem ser lidos por batismo tanto nos ritos iniciáticos, presentes em outros poemas, quanto batismo necessário para percorrer as leituras, imprimindo na série de poemas uma narrativa, ao mesmo tempo esotérica – penetrar nos mitos – e metalinguística – penetrar no livro “Camafeu escarlate” e em sua poesia –.

Mas que batismo é esse? Cristão, certamente, ele não é; trata-se de paganismo e, quem sabe, satanismo; não o Satã do filme “O exorcista”, aquela bobagem, mas de deuses pagãos, reprimidos pelo cristianismo e suas mazelas. A imersão na bruma de Set encaminha o rito, infusões servem para curar; fala-se de mumificação, no rito se tematiza o mundo da morte e sua superação. A morte simbólica rege todas as outras mortes; no símbolo, renascimento e morte são definidos em tensão dialética, disseminada pelas figuras do poema mediante paradoxos e antíteses: rainha maltrapilha, messias e assassinos, visgos e aromas.

Em “ponto cantado de mu”, invoca-se uma divindade atribuída à renovação da vida; o poema tematiza algo semelhante à flor de Lótus enraizada na lama:

“ponto cantado de mu”

vê / quem te chama // sacerdotisa de lata / pupila extravasada // ninfa brusca / gêmea de prata / cnidária // dá-me a mão duende // dá-me a hóstia de alga / nutritiva / plástica // nem que me seja amarga / nem que me seja farta // nem que nela / tu te partas / em plâncton / em limbo / em trovejada // sou teu cavalo marinho / de opala / trote de jade na veia / de hades // dá-me a mão duende / no transe / que invades // a carne / putrefaz / para / que te / alastres

Não vou me perder analisando o poema; chamo a atenção, porém, para dois efeitos de sentido: (1) a invocação; (2) as metamorfoses enquanto metáforas do renascimento. Nas duas primeiras estrofes, há a invocação – “vê / quem te chama // sacerdotisa de lata / pupila extravasada” –; nela, é notável a articulação da poeta invocadora com a divindade invocada; depois do chamado inicial, não se sabe ao certo se a “sacerdotisa de lata” é “quem te chama” – a invocadora –, ou é a própria divindade manifestada – a invocada –. Essa articulação das pessoas do discurso é gerada pela ambiguidade sintática em que ora a “sacerdotisa” é vocativo – a deusa invocada –, ora “a sacerdotisa” é sujeito da oração “quem te chama” – a invocadora –; nesse vínculo, cumpre-se o rito em que a invocadora recebe a divindade invocada, tornando-se ela por meio da oração, no caso, oração com o sentido de reza, mas também significando frase com verbo, quer dizer, a oração ambígua do poema, geradora da conexão mítica. Por isso mesmo “ponto”; “ponto” no sentido de reza para receber o santo.

Quanto às metamorfoses, chamo atenção para o jade e a cor verde. No livro “O simbolismo do corpo humano”, Annick de Souzenelle, opondo vegetais e animais, discute o simbolismo das cores verde e vermelho. Partindo da dicotomia básica do pensamento esotérico material vs. espiritual, o vermelho é homologado à matéria e o verde, ao espírito; Hades, ao dominar o mundo subterrâneo, está próximo do vermelho, entretanto, no corpo do deus, concebido pela Andréia Gavita, corre sangue verde, com o símbolo expressando a ascensão espiritual a partir do mundo material – “trote de jade na veia” –.

Já no poema “patris”, trata-se do processo contrário; em “patris”, o pai se identifica ao carbono, elemento químico fundamental da química orgânica, quer dizer, a química da vida, mas também presente na formação do carvão e do diamante. Nos versos, a transformação do carvão em diamante pode ser correlacionada à depuração do mundo material, analogamente às transformações alquímicas do chumbo em ouro; se, em “ponto cantado de mu”, o sangue verde indica ascensão, em “patris” há a descida à essência da matéria viva, para produzir o brilho.

“patris”

.pai, meu pai carbono. ensina-me a trilha diamantina. / com menos arestas. com mais pontes. brilha tão simé- / trica tua face. e mesmo rude. cortante. percorro-te / as vias. Entendendo-as. nos conflitos, nos confrontos, / nas garras. defesas que navalham docilidades. mas / quero agora. ter-te na cinética da suavidade. um / poema. uma palavra costeira. nas metamorfoses dos / ciclones. espreito teus olhos neste imenso espelho / enviesado. e te invoco os químicos candeeiros. luzeiros / de farol em morro castigado. perfeitos equilíbrios na / noite sem lua. ando pelos dias. voltei para o mar. e / vi medos cansados. migrando como pássaros de gelo. / caminhos brilhantes. caminhos brilhantes. albedos de / apolo. mas ensina-me novamente. os caminhos que / me invocam. um versículo. uma missa verdadeira. nos / altares menestréis. fiéis escudeiros. da sombra de si / mesmo. espadachins de pan. bebendo ao pranto da / escura sentença.

A filosofia esotérica pode ser confirmada em outros poemas, em que ela se explicita com ênfase, feito, por exemplo, em “gálan” e “malleus maleficarum”: (1) em “galán”, práticas esotéricas são aproximadas da poesia e da resistência às alienações advindas do pensamento exclusivamente materialista; (2) em “malleus maleficarum”, Andréia se vale do famoso “Martelo das feiticeiras”, o célebre livro da inquisição de combate à bruxaria, todavia, com simbolismo pagão, conforme se pode ler na invocação “cassandra circe isis istar innana astartéia babalon / irmã // em nome da mãe”.

“galán”

enquanto gritam / lá fora // proibido usar astrologia / utilizar talismãs / sussurrar sortilégios / viver poesia // há o sacrifício de virgens palavras / lá fora / a memória induzida por psicoterapia / lá fora // reabsorvo meu ectoplasma / a psique regurgita os sete véus / de um torah // minha eucaristia é interior // galán / sem roupa / todos somos judeus // galán / sem satã / todos somos seus

“malleus maleficarum”

fui druida esta tarde/ por ti irmão // deu-me de beber este cálice / o elixir de almas abatidas / brancas como o gelo dos precipícios // queimaram-me a garganta / com um fogo lento de carvalhos // no meu cozido de ervas curativas / delataram a corrosão // eu, irmã f. envelhecida, demonizada / em nome do pai, do filho e do espírito // acolhida assexuada /

no círculo cardíaco de baphomet // serei druida / no amanhecer / irmão por ti / cassandra circe isis istar innana astartéia babalon / irmã // em nome da mãe

Ainda no tema do esoterismo, vale a pena lembrar novamente do simbolismo do corpo humano. A filosofia esotérica dá bastante relevância ao corpo humano enquanto símbolo em suas analogias com a natureza e com a metafísica, valendo-se, basicamente, das muitas referências feitas ao corpo nos discursos míticos e religiosos. Na tradição judaico-cristã, por exemplo, o corpo é feito à imagem e semelhança de Deus, permitindo-se redes de analogias entre o corpo e o cosmos; na astrologia, cada signo do zodíaco rege uma parte do corpo. Em religiões ascéticas, o corpo é visto enquanto empecilho à ascensão espiritual, contudo, contrariamente, há crenças em que o erotismo, relacionado a símbolos cosmogônicos e à energia vital, torna-se essencial para a transcendência. Andréia, obviamente, tematiza o simbolismo do corpo humano inserido no último ponto vista:

“amor tetrabiblos”

na cela que é corpo / fechado / planisfério / fagulha votiva / de hélio / agoniza / a virgem fria / dos cleros // na cela que é o corpo / outro corpo / herético / sigila / o cio hermético / almagesto // soubessem as negras centelhas / que esta crença liberta / extinguiriam todas as vendas // matéria dolorosa / evaporada // rezassem as missas vermelhas / que este júbilo desperta / constelariam todas as sendas / matéria gloriosa / revelada // na cela que é o corpo / outro corpo / duplicata // homúnculo & quimera // éter na terra / cinza no céu / hieros gamos na atmosfera

Se hierogamia significa a união sexual entre seres divinos ou entre seres humanos e divinos, enquanto símbolo, tal união tende a valorizar o sexo em suas funções míticas e religiosas.

Para terminar, em “apófis 3d”, ao lado de todos os temas e figuras da poesia da Andréia Carvalho Gavita mencionados antes, encontra-se, na descrição da vida dos gatos, expressões de suas posturas enquanto poeta:

“apófis 3d”

enquanto as areias do egito / eclodem em maná // o gato quase selvagem / no sofá // a coluna de esfinge sonolenta / nem belzebu / afugenta // a pata desatenta / entre picotes de revista / sem foto ou ementa / à colisão / esquecida // enrosca-se na almofada / em órbita / de naja // quando apófis / sacudir a casa / com seus guizos e larvas // o miado despertará / namastês e saravás / toda eclosão esparsa / enfim / unificada // salvos serão / 144.000 astronautas / sem raça, sem medo, sem pragas // o felino, a serpente / e as carcaças

Em sua visão do felino, talvez Andréia veja a si mesma. O gato, símbolo do poema, pois nasce por meio dele, é espelho dela enquanto poeta; ela o vê enquanto se define a si mesma, por meio da poesia.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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