
Para alguns ainda é difícil entender porque a esquerda radical repudia o identitarismo, mas o veto ao cessar-fogo em Gaza sendo dado, pela segunda vez, por um negro (representando um país majoritariamente branco) é mais um excelente exemplo. Diante da potência avassaladora do imperialismo, a cor da pele, a origem, os dramas compartilhados e as raízes são impiedosamente pulverizados. O sujeito, seja qual for sua identidade, será objeto de manipulação pelas forças reais que comandam a nação. A ideia de que negros, gays, trans, mulheres e quaisquer outros que se julguem oprimidos fariam a diferença pela sua representatividade é ingênua – no mínimo – mas é usada para dar a ideia de que sua escolha sinaliza as tão sonhadas equidade e diversidade na sociedade. Puro diversionismo macabro; na verdade, os cordéis continuam sendo manejados pela elite exploradora; mudamos apenas a cor e a vestimenta das marionetes. Nada muda, nada se transforma, mas oferecemos a suprema encenação para que os poderes sigam intocados.
Repito o que digo há décadas: se a representatividade tivesse valor neste nível, a entrada das mulheres na atenção ao parto – como ocorreu de forma marcante nas últimas décadas – teria um efeito revolucionário na assistência ao nascimento. Afinal, mulheres atendendo mulheres e criando entre elas uma sintonia fluida e natural, faria brotar a empatia redentora entre as cuidadoras e suas pacientes. A migração feminina para a obstetrícia deveria produzir uma marcada transformação no cuidado, diminuindo, até quase a extinção, qualquer resquício de violência obstétrica institucional. Essa era, para quem se lembra dos debates dos anos 90, a esperança compartilhada por muitos profissionais da nascente corrente da humanização do nascimento. Nada disso ocorreu. O que se viu na entrada do novo milênio foi que essa esperança era falsa, e a mudança simples no gênero dos atendentes não produziu nenhuma alteração perceptível nos níveis de abuso e violência no parto.
As taxas de violência e abusos praticadas por profissionais na atenção ao parto, sejam eles homens ou mulheres, na atenção ao parto são praticamente iguais. O peso da medicina e a pressão corporativa são muito mais fortes que a identidade. O jaleco branco, a caneta “Parker” e o estetoscópio pendurado no pescoço são mais relevantes do que sua história, sua origem social ou sua identidade. Também por isso havia negros na polícia racista da África do Sul, árabes no exército sionista e pobres e negros nas forças de repressão brasileiras nos inúmeros massacres perpetrados contra a população negra e pobre das periferias brasileiras; a farda pesa mais do que a cor da pele.
Que isso nos sirva de lição na luta contra os preconceitos e a exclusão: a luta precisa ser compartilhada, sem diversionismo. A grande revolução será em torno da luta de classes, não das cores, dos gêneros e dos jeitos de ser. Não existe emancipação de mulheres, negros, gays, etc. que não passe pela revolução contra o capitalismo, atingindo a sociedade de classes e eliminando as barreiras sociais.