Glauber Rocha, certamente, está entre os grandes cineastas do Brasil e do mundo, e “Terra em Transe”, seu terceiro filme, lançado em 1967, está entre seus melhores trabalhos. O filme é sensacional, conta com atores fantásticos, vale a pena lembrar de Jardel Filho, Paulo Autran, José Lewgoy, Glauce Rocha, Hugo Carvana e Paulo Gracindo, ao lado de participações pontuais de Mario Lago, Flavio Migliaccio, Paulo César Pereio e Jofre Soares. Além disso, a seleção musical é impecável e os poemas atribuídos a personagem Paulo Martins, vivida por Jardel Filho, são tão bons que mereceriam ser publicados.
O filme se passa em Eldorado, país fictício da América Latina; nele é tematizada a disputa política entre Porfírio Diaz – Paulo Autran –, representante da extrema-direita, e o candidato progressista Felipe Vieira – José Lewgoy –, mediana pelos pontos de vista contraditórios do jornalista e poeta pequeno burguês Paulo Martins. O filme é um diagnóstico da política dos países explorados pelo imperialismo, cujos agentes aparecem no filme financiando as campanhas de Porfírio Diaz e coaptando os meios de comunicação, as redes de televisão e a imprensa monopolizados pelo burguês Júlio Fuentes – Paulo Gracindo –. Por ser país explorado, Eldorado vive sua revolução permanente nos dramas da burguesia local constantemente oprimida pelo imperialismo e nas contradições do campesinato e do proletariado que mal conseguem se organizar perdidos entre seus próprios dirigentes e a pequeno burguesia intelectualizada, ligeiramente esclarecida, mas não suficientemente para escapar das soluções reformistas e temerosas diante da revolução.

Evidentemente, não quero fazer apreciações exaustivas do filme, detenho-me brevemente em apenas três personagens: Diaz, Vieira e Paulo Martins, e seus engajamentos políticos. Logo na primeira aparição na tela, Diaz surge segurando uma pistola e a cruz em suas campanhas políticas para, logo em seguida, ser abandonado pelo amigo Paulo Martins, poeta e jornalista, quem, deixando a capital de Eldorado, alia-se a políticos progressistas, articulando a candidatura de Vieira. Vieira, por sua vez, é o candidato preferido para as próximas eleições, mesmo levando adiante políticas reformistas e firmando-se mediante acordos com a burguesia local; entretanto, para a infelicidade da esquerda, Diaz termina eleito apoiando-se no imperialismo e nas telecomunicações monopolizadas por Fuentes.
Ora, apesar de algumas diferenças, pois Diaz não é líder popular, mas solitário, e Vieira tem origem na classe média e não no proletariado, Diaz e Vieira podem ser aproximados de Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva; a retórica da religião e das armas do primeiro e o reformismo do segundo não são meras coincidências enfatizadas no filme, elas fazem parte não apenas dos papéis dramáticos do cinema, mas também dos papéis políticos presentes nos países explorados pelo imperialismo.

E quanto a Paulo Martins? Apesar de grande poeta, ele não deixa de ser intelectual pequeno burguês, por isso mesmo constantemente indeciso entre a revolução, a reforma e inclusive posturas fascistas. Para lembrar de algumas atitudes suas, vale a pena mencionar duas: (1) embora esquerdista, Paulo Martins despreza os trabalhadores, para ele camponeses e operários nada têm a dizer além de tontices; (2) quando sua parceira, a jornalista e revolucionária Sara – Glauce Rocha –, narra passagens de sua militância, inclusive a prisão e os abusos e torturas sofridos na cadeias, Paulo Martins responde declamando poemas, buscando comparar suas crises existenciais juvenis com a verdadeira ação política da companheira. Nesse papel, Paulo Martins é o arquétipo dos intelectuais da imprensa alternativa, dos professores universitários e de muitos artistas do campo supostamente progressista, dos tempos do Cinema Novo até os dias de hoje.

Por fim, desejando aos companheiros uma boa sessão de cinema, fica aqui a sugestão do filme, encontrado completo no YouTube neste endereço: