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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Música brasileira

Adeus a Gal Costa

As performances de Gal Costa cantando descalça e descabelada não seriam nada sem sua voz, fonte de tudo.

              A cantora Gal Costa faleceu no dia 9 de novembro do ano corrente. Seu papel na MPB, nas concepções do tropicalismo e talento musical são incontestáveis, logo, eu poderia escolher quaisquer trabalhos dela e comentar a qualidade da interpretação das canções e das escolhas do repertório; entretanto, prefiro me deter em outra engenhosidade sua bastante marcante, muitas vezes inovadora, isto é, sua maneira de colocar o próprio corpo na esfera da performance musical, tornando-o não apenas fonte da voz, mas de outros sentidos.

              Tema presente nas demais artes brasileiras e não apenas em canções, o corpo é considerado, antes de tudo, tema de consciência nacional, opondo-se, desse ponto de vista, aos modelos de corpo e de beleza ditados pelo imperialismo cultural. A literatura negra e o samba estão repletos de tais ocorrências; em sua política, o movimento negro é necessariamente obrigado a colocar as questões do corpo, reafirmando na arte negra a cor, os cabelos e demais traços físicos. Assim, no que diz respeito à mulher brasileira, houve, durante o romantismo, a vez de cantar as morenas; o romance mais conhecido a esse respeito, sem dúvida, é “A moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado em 1944, contudo, talvez a prosa mais interessante e infelizmente menos conhecida seja “O gaúcho”, de José de Alencar, editado em 1870. Em ambos os romances, as costumeiras loiras, musas de movimentos literários anteriores e de outras culturas, são preteridas e, em seus lugares, surgem as mocinhas de cabelos pretos e pele morena, tais quais a Carolina, de Macedo, ou a Catita, de Alencar, essa última, vivendo nas fronteiras do sul do Brasil com a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, assume características não apenas brasileiras, mas latino-americanas.

              Essa tradição de valorização da mulher permanece na nossa cultura, basta conferir a quantidade de musas representadas nas artes brasileiras; na performance musical, Gal Costa explicitava isso contundentemente. É necessário lembrar de que quando Gal surgiu nos palcos e nas telas de televisão do Brasil, estávamos nos finais da década de 1960 – seu primeiro álbum “Domingo”, gravado em parceria com Caetano Veloso, é de 1967 –, bastando assistir a quaisquer vídeos daqueles anos para conferir os modos de apresentação dos artistas da época: (1) os homens vestindo terno, gravata, barba e cabelos bem aparados – Chico Buarque interpretou “Roda viva”, também em 1967, vestido assim –; (2) as mulheres trajando vestidos discretos, respeitosos, depiladas e bem penteadas  – por exemplo, Elis Regina interpretando “Arrastão”, em 1965 –. Nessas circunstâncias, cantar de cabelos cacheados soltos – “cabelo, cabeleira, cabeluda, descabelada”, diria Gal Costa ao interpretar “Cabelo”, de Arnaldo Antunes e Jorge Ben –, descalça, expondo pernas, braços, ventre e colo explicitamente foi escandaloso e até sexualmente revolucionário às portas do AI5 e diante dos avanços moralistas da extrema direita; a própria Gal recorda-se, em várias entrevistas, das agressões sofridas por se apresentar assim. Além do mais, Gal Costa sempre foi belíssima; com seus vinte anos de idade, somava-se a sua beleza o frescor da juventude, acrescentando-se a tudo isso o charme dos rebeldes e as promessas de liberdade.

              O Brasil é um país fértil em cantoras talentosas; vale lembrar de Ademilde Fonseca, Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Ângela Maria, Elis Regina, Ivone Lara, Beth Carvalho, Clara Nunes, Elba Ramalho, Cátia de França, Jovelina Pérola Negra, Maria Bethânia, Flora Purim, Cássia Eller e Baby Consuelo; colocar-se entre elas e se fazer escutar atentamente não é tarefa fácil; as performances de Gal Costa cantando descalça e descabelada não seriam nada sem sua voz, fonte de tudo, parceira fiel daqueles tempos e depois, quando envelheceu e morreu com dignidade.

              Para finalizar, quero deixar aqui a interpretação da canção “Atrás da porta”, de Chico Buarque e Francis Hime, feita por ela. Essa canção foi gravada numerosas vezes no repertório brasileiro, inclusive por homens, entre eles, os dois compositores; talvez a interpretação mais conhecida seja a de Elis Regina. Gal Costa, no álbum “Mina d’água do meu canto”, 1995, também gravou “Atrás da porta”; para mim, essa gravação é a melhor de todas; acompanhada por orquestra de cordas, metais, violão, piano, baixo e bateria, com arranjos de Jaques Morelenbaum, sua voz não se destaca da instrumentação, mas segue entremeada com ela, sem exageros, deixando com que a própria linha melódica da composição embale a cantora e sua poesia.

* A opinião dos colunistas não expressa, necessariamente, a opinião deste Diário

https://www.youtube.com/watch?v=VsnN76pursI

 

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