Estamos acompanhando com especial curiosidade o desenrolar dos acontecimentos no Brasil desde a aplicação da Lei Magnitsky contra o juiz Alexandre de Moraes, do STF, por iniciativa de Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. Se, por um lado, a medida tem efeitos aparentemente prosaicos, como subtrair o cartão de crédito do ministro, por outro, traz à tona alguns efeitos educativos, sobretudo para certa esquerda cor-de-rosa.
O primeiro deles é o de pôr às claras o poder do imperialismo sobre nós. Enquanto, há anos, movimentos identitário-decolonialistas se ocupam de cancelar o Padre António Vieira, de derrubar estátuas de Luís de Camões e de se insurgir contra o padrão lusitano da norma culta da nossa língua, que, segundo eles, deve ser chamada de língua brasileira, para que declaremos de vez nossa independência do jugo português, estamos a ver de quem efetivamente somos colônia.
Esperamos sinceramente que os acontecimentos despertem a esquerda do torpor identitário patrocinado pelas organizações não governamentais que vêm colonizando as universidades com suas teorias fantasiosas. A realidade clama, dia após dia, pela leitura correta dos fatos. Enquanto a luta de classes se acirra, o peleguismo identitário se contenta em mandar prender o vizinho, que pode ser um “pobre de direita”, um evangélico ou simplesmente uma “cabeça de gado”. A esquerda brinca de identitarismo, um jogo armado pelo próprio imperialismo para desorganizar a luta unificada do povo.
O governo, agora, entoa o discurso da soberania, tentando extrair da crise algum dividendo para as próximas eleições, mas a burguesia, entreguista, joga água na fervura pedindo “negociação”. Não nos espantaria que nos banquetes nas mansões de lideranças burguesas, como João Doria e companhia, a cabeça de Moraes estivesse sendo servida em bandeja de prata. A burguesia sabe onde lhe aperta o sapato e não costuma ter dor de consciência.
O STF, depois que seu ex-presidente Luís Barroso sinalizou que anteciparia a própria aposentadoria (com medo de receber de Trump um “perdeu, Mané”), ainda tenta manter a pose. O ministro Flávio Dino, ao julgar uma ação contra a Vale, trouxe a público decisão em que esclarece que punições com base em leis de outros países só se aplicam no Brasil se o STF as homologar, como, aliás, o fez no caso do jogador de futebol Robinho, que foi condenado na Itália e cumpre pena em prisão brasileira. Contra o Robinho, menino negro e de origem pobre, que enriqueceu jogando futebol, o poderoso STF não teve dúvidas. Contra a Lei Magnitsky, dos Estados Unidos, que não foi criada por Trump, nada poderá fazer, além de mostrar sua indignação.
E é exatamente aí que as coisas vão ficando ainda mais claras: não se trata de aplicação de uma lei de outro país em nosso território, como arguiu o ministro. Os Estados Unidos estão aplicando sobre o Brasil uma sanção, exatamente como sempre fizeram com seus notáveis inimigos (Cuba, Venezuela, Rússia e outros). Essa lei, em particular, criada no governo do democrata Barack Obama, serve para punir “ditadores”, “terroristas” e outros espantalhos que “desrespeitam os direitos humanos” e, por isso mesmo, merecem ser “cancelados”. Até agora, ninguém tinha criticado com veemência o método norte-americano de esmagar seus inimigos. Não há nada de novo nessa política, que, diga-se mais uma vez, não foi criada por Trump e sua extrema direita.
Esse ponto, aliás, é bem elucidativo também para aqueles que se empolgam com leis que parecem feitas sob medida para atingir seus inimigos. Governos mudam, e leis permanecem, podendo ser usadas contra outros inimigos. Hoje a esquerda, em peso, usa seus dotes intelectuais para defender os (supostos) limites da liberdade de expressão porque, neste momento, seus inimigos vociferantes da extrema direita seriam oportunamente calados. Amanhã, seus argumentos corroborarão a cassação de seus mesmos direitos. Trump está usando contra um representante da burguesia brasileira uma lei aprovada, em tese, para outro tipo de inimigo, já que os entreguistas daqui, a troco de benesses, nunca se opuseram à dominação norte-americana, que massacra o povo brasileiro. Essa burguesia, que sempre esteve disposta a vender o país para encher os próprios bolsos, não tem moral – nem coragem – para defender Alexandre de Moraes em nome de um vago – muito vago – sentimento de soberania.
De resto, Alexandre de Moraes atua no mais alto tribunal do país como se estivesse “lacrando” em rede social. Não à toa, suas ações “geram engajamento” e o fazem ter “seguidores” e uma claque de esquerda invariavelmente disposta a justificar suas arbitrariedades em nome da luta pela democracia. Inebriado de si mesmo, o ministro atropela a lei, calafeta a Constituição com suas interpretações, cassa a palavra dos outros, suprimindo contas em rede social, bloqueia conta bancária de familiares de acusados, tudo como se fosse um rei ungido por alguma divindade. A sanção de Trump mostra que o ministro reina, mas apenas nos limites de uma república bananeira.
Segundo matéria do jornal O Globo, a aplicação da Lei Magnitsky pode ir além de bloquear as contas do ministro, inclusive a conta-salário no Banco do Brasil. As redes sociais, em sua maioria, são empresas americanas, que ficam proibidas de manter contrato com o sancionado. Moraes corre o risco de ficar sem cartão de crédito, sem conta bancária, sem WhatsApp, sem redes sociais e, pasmem, até sem Netflix. A situação está mais humilhante que usar uma tornozeleira eletrônica.
Em suma, Trump, com o estilo brusco da extrema direita, expôs a nossa triste e patética realidade. Se alguém ainda não tinha entendido o que se passa na vida real, Trump desenhou. O identitarismo, que abduziu a esquerda universitária, só serviu para desmobilizar a luta social e turvar a leitura da realidade, como se a luta não se desse entre classes, mas entre raças e gêneros. Teorias “decoloniais”, derivadas do identitarismo, produzem inócuas teses acadêmicas, enquanto o imperialismo explora os povos do mundo todo.
A burguesia brasileira, por sua vez, é vergonhosamente entreguista e, por óbvio, inimiga do Brasil. É gente que vende o país para encher os próprios bolsos sem esforço e usufrui de um conforto inimaginável pelo povo. É gente que se desloca em seus helicópteros e aviões particulares, que passa férias em paraísos privados de natureza preservada. Soberania não quer dizer nada para essa classe. Quanto ao STF, bem, é difícil negar seus flagrantes abusos. O próprio Luís “Mané” Barroso admitiu que o tribunal deu “uma ou outra derrapada”.
O presidente americano deu um puxão de orelha no ministro todo-poderoso, que, acostumado às boas relações com o imperialismo na versão “democrata”, foi pego de surpresa. É bom lembrar que, no país de Trump, “democratas” são a oposição, não os amigos.
Enquanto Trump bagunça o coreto por lá, a esquerda poderia começar a se organizar por aqui. Para início de conversa, o maior partido de esquerda do Brasil deveria fazer um esforço para não se alinhar ao direitista Partido Democrata dos Estados Unidos. Nossa luta não é contra Donald Trump, mas contra o imperialismo, esteja ele sob o comando de republicanos, democratas ou fascistas – tanto faz.



