Recentemente, assisti a um filme na Netflix chamado A Vingança está na Moda (The Dressmaker, 2015), dirigido pela australiana Jocelyn Moorhouse, e estrelado por uma atriz de primeiro time de Hollywood, a também australiana Kate Winslet.
O filme é reacionário. Conta a história de Tilly Dunnage (Winslet), que volta à sua cidade natal, um fim de mundo australiano, após 25 anos de ausência. Ela havia sido expulsa e acusada de ter assassinado, aos 10 anos, um violento colega da escola. Trata-se dos anos 1950 e, durante o período que esteve fora, Tilly se tornou assistente dos mais importantes estilistas de moda de Paris. Ela volta com uma carga cultural enorme para um lugar inóspito e miserável, recheado com aquele tipo de pessoa que hoje em dia a esquerda pequeno-burguesa nacional chama de “pobre de direita”.
No início, há algo de fábula no enredo, de comédia de costumes, porém, a diretora transforma tudo em melodrama no final, usando de moralismo identitário para punir os pobres do lugar por serem contra a injustiçada, elegante e civilizada personagem de Winslet que, vestida de Dior, não tem medo de chamar de “lixo” toda essa gente na última cena do filme.
Nos créditos, é informado que o enredo foi adaptado de um romance, contudo, é impossível não perceber que sua principal referência é Dogville (2003), dirigido pelo cineasta dinamarquês Lars von Trier e que tem como atriz principal a também australiana Nicole Kidman no papel de Grace.
Assistir a essas duas películas é um exercício interessante para compreender como a forma do filme interfere no significado político da obra e como a leitura materialista consegue expor contradições. Moorhouse com certeza assistiu a Dogville, mas, seja pelo dinheiro fácil, ou seja por ignorância mesmo, mostrou com seu filme que não entendeu nada.
Na história de von Trier, estamos na época da Grande Depressão nos Estados Unidos. Grace, elegante e rica, chega com seu pai, um gângster, à cidade de Dogville, com o objetivo de mostrar a ele que há bondade no mundo. Ele é cético. Mas ela está determinada em provar. Para tanto, ela escolhe ficar durante um tempo na pequena e miserável cidade.
Grace começa seu experimento social oferecendo pequenos serviços e ajuda aos habitantes miseráveis do local que a princípio são muito gratos, mas, não demora muito para que uma sanha autoritária tome conta deles. A partir desse ponto, eles a utilizam como escrava. Ela sofre todo tipo de violência, incluindo estupro. No final, com a volta do pai, a vingança implacável: o lixo humano de Dogville é exterminado.
Com enredos tão parecidos, qual a diferença entre os dois filmes? Na abordagem e no trabalho com os materiais. Quem assistiu a Dogville, vai lembrar como von Trier trabalha com um cenário que parece um teatro, em que as casas são riscos desenhados no chão e tudo depende dos efeitos sonoros, como uma porta abrindo, por exemplo.
Só isso já ajuda a mostrar que seu filme não busca o efeito de “realismo” convencionado pelo cinema mais comercial. Sabemos que o “realismo” deste tipo de cinema é usualmente a representação do ponto de vista do que a classe dominante considera real.
Com o tempo, Dogville foi reconhecido como um exemplo excepcional do uso das técnicas de Bertolt Brecht no cinema, como o efeito de estranhamento, que visa fazer a audiência questionar o uso da arte como representação da cultura dos mais ricos. Sua função é possibilitar a existência de obras cujo ponto de vista seja o daqueles que são oprimidos.
O filme se apoia em um narrador em voice over e em outras técnicas para criar uma fábula política com uma crítica ácida aos atuais valores morais dominantes, principalmente os da cultura americana. O segredo de von Trier está no uso magistral do ponto de vista do filme que, em nenhum momento, se identifica com o ponto de vista de Grace.
Normalmente, a audiência que se identifica com o ponto de vista de Grace é formada por um tipo de pessoa que conhece os filmes de Lars von Trier, mas fica feliz com o massacre final. É catártico. Provavelmente, nos dias de hoje, condenam a violência em Gaza, mas não totalmente, afinal os muçulmanos são contra as mulheres, contra os gays, são fanáticos religiosos violentos e contra a civilização ocidental.
A realização do diretor dinamarquês é magistral, pois explicita o conflito de classes como fator determinante para o entendimento de sua obra e põe a audiência contra a parede. A realização da diretora australiana mostra a sua adesão fácil aos mesquinhos valores identitários fascistoides da sua própria condição de classe no atual momento histórico.