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Henrique Áreas de Araujo

Militante do PCO, é membro do Comitê Central do partido. É coordenador do GARI (Grupo por Uma Arte Revolucionária e Independente) e vocalista da banda Revolução Permanente. Formado em Política pela Unicamp, participou do movimento estudantil. É trabalhador demitido político dos Correios e foi diretor da Fentect (Federação Nacional dos Trabalhadores dos Correios)

Coluna

A poesia de Lupicínio Rodrigues

Há 50 anos de sua morte e 110 do seu nascimento, uma homenagem ao grande sambista gaúcho

O compositor Lupicínio Rodrigues morreu no dia 27 de agosto de 1974, há 50 anos. A alcunha de inventor da dor-de-cotovelo, embora significativa, está longe de definir a importância do sambista gaúcho.

Lupi, como era chamado, foi um dos grandes compositores da música popular brasileira, arrisco dizer que ele é o maior quando o assunto é samba-canção, gênero mais cadenciado de samba, com forte influência do bolero e, principalmente no caso das composições de Lupicínio, do tango.

Nascido em Porto Alegre, há 110 anos, no dia 16 de setembro de 1914, no antigo bairro da Ilhota, um dos bairros que concentrava a população pobre e negra da capital gaúcha, Lupicínio é uma amostra do enorme poder criativo do povo brasileiro quando o assunto é música popular.

Lupicínio não foi totalmente esquecido pela imprensa nessa data, como é comum acontecer com grandes compositores da música popular. Recentemente publicamos neste Diário uma homenagem a Paulo Vanzolini, que em pleno centenário, quase não foi citado nas páginas dos jornais.

No entanto, a quantidade de citações e menções a Lupi é muito pouca perto da grandeza do compositor gaúcho. E na maioria das vezes, uma abordagem um tanto superficial de sua obra acaba por mascarar a real importância do compositor.

A imprensa capitalista parece sentir certa necessidade de trazer coisas atuais que nem sempre condizem com a matéria sobre a qual estão falando. Muitos artigos decidiram comparar Lupicínio com a tal da “sofrência”, termo inventado mais recentemente para designar músicas que antigamente simplesmente chamaríamos genericamente de brega (não entrarei aqui no debate sobre esse problema).

Dizer que Lupi é uma espécie de pai da “sofrência” é tão correto quanto dizer que Shakespeare é o precursor das novelas televisivas. Embora possamos encontrar um ponto de contato – muitíssimo superficial, diga-se de passagem – reduzir a obra do gênio do teatro a uma novelinha é, primeiro, perder totalmente o senso de proporção, segundo, esconder a importância e a genialidade do autor inglês.

Lupicínio é um gênio da composição popular. Sua opção por tratar de temas amorosos apenas torna sua obra ainda mais genial. É quase misterioso que um assunto tão aparentemente banal quanto uma desilusão amorosa, uma traição ou a paixão por uma mulher da vida se torne poesia do mais alto nível na caneta e caixinha de fósforo de Lupi.

O que isso tem a ver com a tal da “sofrência”, absolutamente ou quase nada. Em geral – e me perdoe se houver exceções – o pop atual que se enveredou pelo caminho da “sofrência” é superficial e fútil, como são a esmagadora maioria das criações promovidas pelos monopólios da indústria fonográfica. Mas deixemos de lado isso, pois o assunto é poesia e, do mais, cada um tem o direito de comparar o que quiser.

Lupicínio – novamente na minha mais modesta opinião – é o compositor da música popular brasileira que melhor conseguiu fazer aquilo que talvez seja o mais importante para uma boa composição popular: o entrelaçamento perfeito entre letra e melodia.

Aqui vale uma explicação: uma letra de música é uma poesia, mas é um tipo específico de poesia. Ela não é exatamente a mesma coisa do que o poema, entendido enquanto gênero literário. A poesia de uma letra de música tem suas próprias regras. A querida companheira Helena Meidani, amante da boa literatura, recentemente comentou comigo de um episódio em que Chico Buarque se revoltava com os jornais que publicavam suas letras antes do lançamento do disco. Sua revolta estava justamente em que ele entendia – corretamente – que as letras só faziam sentido quando estavam junto da melodia.

É isso o que faz com que muitas músicas populares, às vezes com temas ingênuos, forma e conteúdo bem simples, sem grandes recursos literários, se tornem grandes obras de arte. Para entender melhor isso, basta lembrarmos de tantos e tantos clássicos da MPB.

Voltando a Lupi, na maioria de suas canções a melodia está a tal ponto conectada com a letra que o cantor parece estar recitando cada sílaba. Isso também fez Lupi um grande intérprete de suas próprias canções, já que ele tinha preferência pelo canto mais intimista, que fugia dos grandes cantores de estilo operístico, em moda na sua época. Não que as interpretações de suas músicas como as que gravaram Francisco Alves ou Orlando Silva sejam de se jogar fora.

Para quem quiser fazer a experiência, a música “Torre de Babel” é um bom exemplo. A primeira parte da melodia casa perfeitamente com a primeira parte da letra, transmitindo a sensação de que algo está sendo construído. Tal sensação dura até o auge da letra quando a “torre” construída pelo casal desmorona e a melodia atinge também o seu ápice.

Para quem tiver curiosidade, o poeta concretista Augusto de Campos escreveu um artigo (no livro Balanço da Bossa e outras bossas) em que ele destrincha algumas das músicas de Lupicínio, demostrando essa incrível junção de letra e melodia.

A maior parte das canções, Lupi fez sozinho, o que torna ainda mais impressionante a criatividade de sua obra. Isso também explica, ao menos em partes, a relação letra-melodia. É muito comum entre os sambistas que a composição da letra seja feita ao mesmo tempo que a melodia, feita normalmente de cabeça, enquanto as palavras vão surgindo, às vezes sem nenhum instrumento acompanhando. A coisa vai acontecendo de maneira muito intuitiva.

Constatando isso, a obra de Lupicínio ganha ainda mais genialidade. Para um compositor popular, suas letras são riquíssimas de imagens muito bem construídas, metáforas surpreendentes e um cuidado com a métrica e com a rima que impressiona.

Suas letras estão repletas de rimas ricas, colocadas de tal maneira na poesia o ouvinte quase não percebe a presença delas ali. Elas aparecem na letra com naturalidade, sem dar a impressão de que estão ali forçadas, embora sejam muitas vezes até mesmo rebuscadas. Um exemplo, de muitos na obra dele, é um dos seus maiores sucessos, “Cadeira Vazia” (em parceria com Alcides Gonçalves), em que o esquema de rimas é mantido do início ao fim da canção.

Entra, meu amor, fique à vontade (A)

E diz com sinceridade (A)

o que desejas de mim (B)

Entra, podes entrar, a casa é tua (C)

Já te cansastes de viver na rua (C)

E os teus sonhos chegaram ao fim (B)

Eu sofri demais quando partistes (A)

Passei tantas horas triste (A)

Que nem quero lembrar este dia (B)

Mas de uma coisa podes ter certeza (C)

O teu lugar aqui na minha mesa (C)

Tua cadeira ainda está vazia (B)

Tu és a filha pródiga que volta (A)

Procurando em minha porta (A)

O que o mundo não te deu (B)

E faz de conta que sou teu paizinho (C)

Que tanto tempo aqui ficou sozinho (C)

A esperar por um carinho teu (B)

Voltastes, estás bem, estou contente (A)

Só me encontrastes muito diferente (A)

Vou te falar de todo coração (B)

Não te darei carinho, nem afeto (C)

Mas pra te abrigar, podes ocupar meu teto (C)

Pra te alimentar, podes comer meu pão (B)

Outra constante no que se falou sobre Lupicínio em artigos e especiais foi o seu potencial “cancelamento” caso tivesse escrito hoje suas canções. Aí entra a ignorância do identitarismo, tão distante da realidade e da beleza da cultura brasileira. Muitas das coisas que li sobre Lupi vinham com uma ressalva moral, como essa que aparece na coluna publicada no G1 (Globo), assinada por Mauro Ferreira, no dia 25/08: “Em sintonia com a moral machista da época em que viveu, o compositor muitas vezes se portou nas letras – algumas de disfarçado caráter biográfico, outras de inspiração nas dores alheias – como o macho orgulhoso que culpa a mulher pela traição e pelo infortúnio do amor a dois.” Coisa besta de se dizer. Não tem machismo, nem feminismo, nem nada, a obra só tem beleza porque é assim e pronto. Ninguém precisa de nota de rodapé moral para apreciar uma música.

Porém, não deixa de ser verdade, se o identitarismo fosse coerente com seus dogmas religiosos, que Lupicínio deveria ser extinto da cultura nacional, censurado, apagado, “cancelado”. No entanto, como é impossível fazer isso, restam as notas moralistas, como se o leitor e o ouvinte fossem crianças que precisam receber lições de moral (se bem que até para crianças isso seria contestável). Outra coisa que dá um nó no identitarismo é que Lupicínio é negro no Rio Grande do Sul, o que de fato é muito interessante. Aí, o identitarismo fica na dúvida se cancela ou se faz demagogia.

Mas deixemos para lá o lodo intelectual atual.

Lupi era, ainda, como bom homem do povo, um amante de futebol. Gremista doente, ele compôs o hino do clube. Sorte do Grêmio, que pôde contar com um grande melodista para fazer um dos hinos mais marcantes entre os clubes brasileiros. Seu envolvimento com o Grêmio, aliás, dá uma história muito interessante que deve ser contada em outro momento.

Um artigo para nossa revista de cultura, Breton, e para o Dossiê Causa Operária está sendo preparado com mais histórias e informações e mais considerações sobre a obra de Lupi. Por enquanto, para marcar o aniversário de morte e de nascimento, deixamos essa breve homenagem.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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