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Kamala Harris e a esquerda

Qual é a posição marxista sobre a questão do mal menor?

Questão foi analisada minuciosamente por Wilhelm Liebknecht,

As eleições norte-americanas de 2024 trouxeram à tona um debate que acompanha a esquerda há mais de um século: os trabalhadores deveriam votar em um inimigo político para combater outro inimigo político? Essa questão, que foi discutida minuciosamente no último ano do século XIX pelo revolucionário alemão Wilhelm Liebknecht, aparece hoje como a de teoria do “mal menor”.

Na tentativa de mascarar o seu oportunismo (isto é, a política de ficar a reboque a uma classe social inimiga), os defensores da teoria do “mal menor” sustentam que, diante de uma disputa entre dois inimigos políticos, seria preciso declarar apoio ao inimigo que, por alguma razão, seria “menos pior” que outro. No caso dos Estados Unidos, esse “mal menor” seria a candidata democrata Kamala Harris.

Os apoiadores de Harris na esquerda estão dispostos a sofrer um processo de amnésia coletiva. A esquecer que seu partido é o responsável pelo assassinato de cerca de 200 mil palestinos em menos de um ano de guerra. A esquecer que seu partido foi responsável pelo golpe de 2016 no Brasil, pela prisão de Lula (PT) e pela vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (PL). A esquecer que seu partido é o responsável pelo regime fascista de Vladimir Zelenski e pelo choque neoliberal de Javier Milei. Todos os crimes dos democratas, pretéritos e presentes, estão prestes a ser indultados por um único “mérito” de Kamala Harris: o de que ela pode derrotar Donald Trump nas eleições.

Esqueçam, dizem os apoiadores da teoria do “mal menor”, os seus irmãos norte-americanos que vivem na rua e nem têm direito a um serviço de saúde público. É hora de se aliar àqueles que transformaram a sua vida em um inferno porque, no final das contas, eles apenas querem o nosso bem. É por isso que invadem países miseráveis. É por isso que dão tanto dinheiro aos banqueiros. É por isso que amordaçam os jornalistas que ousam falar a verdade. Nossos irmãos democratas pisaram na cabeça de cada um de nós apenas para que pudesse atirar, do lugar mais alto, na cabeça do nosso único inimigo.

A defesa do “mal menor” o mais completo abandono da defesa dos interesses dos oprimidos, em nome tão somente do apoio àqueles que não estão dispostos a salvar nem a própria mãe do fascismo. Do apoio àqueles para quem a palavra “democracia” não significa mais que uma bomba atômica sobrevoando o território inimigo indefeso.

Na época em que Wilhelm Liebknecht se debruçou sobre o assunto, tal política. Já era profundamente reacionária e cínica. O folheto Nenhum compromisso, nenhum acordo eleitoral, publicado em 1899, é o resultado da experiência do movimento operário com oportunistas como o francês Alexandre Millerand, que ingressou em um governo burguês, e de Eduardo Bernstein, que propunha o abandono da teoria marxista. Isto é, em uma época em que o imperialismo ainda não havia exposto ao mundo todo o seu sadismo e crueldade.

Liebknecht não precisou ver as bombas atômicas sobre Hiroxima e Nagasáqui, as sangrentas ditaduras militares latino-americanas, a limpeza étnica na Faixa de Gaza, a destruição neoliberal em países como a Rússia após a queda da União Soviética ou os bombardeios a populações civis para chegar a uma conclusão óbvia: a de que não existe o tal “mal menor”.

Em resposta ao que hoje seriam de chamados de “pragmáticos” (para quem os princípios políticos têm tanto valor quanto uma nota falsa de um real), Liebknecht não ignora, hipoteticamente, que os acordos com os partidos da burguesa possam ser “úteis” tanto do ponto de vista de obter “cadeiras no parlamento” quanto do ponto de vista de forjar um “aliado” contra um suposto inimigo comum. No entanto, o grande mérito do revolucionário alemão está em demonstrar, já naquela época, que qualquer compromisso político deve estar sujeito a uma série de critérios- do contrário, não passam de mero oportunismo. E esses critérios, no que diz respeito aos compromissos eleitorais em torno da teoria do “mal menor”, revelam que essa política levará, inevitavelmente, ao fracasso.

Liebknecht questiona se o “aliado” não é um inimigo disfarçado, se e de que maneira ele realmente luta contra o inimigo comum e se os acordos não são prejudiciais aos objetivos mais permanentes e profundos do partido proletário. Em todos esses casos, podemos afirmar com segurança: o apoio à Kamala Harris é um grande erro.

Quanto à Kamala Harris ser um inimigo disfarçado, não há dúvidas e já foi discutido aqui. Harris é a vice-presidente de um governo que está, neste momento, financiando um dos espetáculos mais macabros que a humanidade inteira já viu. Seu apoio à “Israel”, contudo, vai muito mais além que ser vice-presidente: ela é uma pessoa sabidamente vinculada ao mais poderoso lobby sionista do mundo, a AIPAC.

Pôde-se dizer que Harris é uma inimiga “disfarçada” (é muito mal disfarçada) somente porque ela conta com o apoio de setores da esquerda internacional, que fazem questão de enganar os trabalhadores, apontando-a como uma amiga dos oprimidos. Não fosse o esforço desses setores em apresentar Harris como aliada, seria hoje muito mais difícil de os trabalhadores se iludirem com seus inimigos, visto que os crimes de hoje da burguesia norte-americana são muito mais podres e escancarados que na época em que Liebknecht escreveu seu folheto.

É por isso que combater a tentativa de apresentar o inimigo como aliado deve ser uma tarefa central de um revolucionário. Sem o disfarce, os trabalhadores tendem a se enfrentar diretamente com os seus inimigos. Assim, nos ensinou Liebknecht:

“As atrocidades estúpidas e cruéis perpetradas pelos políticos policiais, as investidas da Lei Anti-Socialista, a lei draconiana, a lei contra partidos que advogam a revolução, podem evocar sentimentos de desprezo e pena; mas o inimigo que nos estende a mão para um acordo eleitoral e se insinua em nossas fileiras como amigo e irmão é o inimigo, o único inimigo que devemos temer”.

Quanto a defender a humanidade contra Trump, a extrema direita ou qualquer outro inimigo da humanidade, também não é difícil provar que a candidatura de Kamala Harris é inútil. O Partido Democrata, afinal, foi o responsável por estabelecer o regime fascista de Kiev e por manter o governo fascista de Benjamin Netaniahu. Em que mundo isso poderia ser considerado “combater o fascismo”? Na verdade, o único “combate ao fascismo” que o Partido Democrata implementou no último período foi se valer de uma suposta preocupação a figura de Donald Trump para tornar o regime ainda mais antidemocrático. Algo que apenas fez com que os direitos dos trabalhadores fossem diminuídos, enquanto Trump, na medida em que era perseguido, se tornou mais popular.

Por tudo posto, fica óbvio também que nenhum ganho de assentos no parlamento justificaria tamanha traição como apoiar Kamala Harris. No entanto, isso nem mesmo deveria ser considerado no Brasil, uma vez que não é possível fazer um acordo eleitoral com o Partido Democrata. Isso, no entanto, só torna o apoio à Harris ainda mais injustificável.

O interesse em apoiar a inimiga Kamala Harris quando não há nem mesmo um cálculo eleitoral envolvido só demonstra o quanto esses setores da esquerda estão profundamente a reboque do imperialismo. Estão dispostos, a qualquer tempo e em qualquer ocasião, sob qualquer pretexto é contra quem for, defender os interesses dos maiores inimigos da humanidade.

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