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Coluna

A Pena e a Lei

"E, por fim, Deus questiona a todos: se pudessem viver, viveriam novamente?"

“Se cada qual tem seu crime,

Seu proveito, perda e dano,

Cada qual seu testemunho,

Se cada qual tem seu plano,

A marca, mesmo da peça

Devia ter sido essa

De Justiça por Engano!”

A primeira peça teatral escrita por Ariano Suassuna foi uma tragédia chamada “Uma Mulher Vestida de Sol” (1947) redigida quando o autor tinha 20 anos e ainda era estudante de Direito da Faculdade de Recife.

Depois de formado, Suassuna retornou à cidade de Taperoá para cuidar de um problema no pulmão. Era uma pequena comarca situada no sertão da Paraíba onde passara a infância: lá retoma o contato com a cultura popular, o que iria marcar a sua produção literária subsequente.

Deixando de lado a tragédia, o escritor dedicar-se-ia às comédias que o deixaram famoso. E dentre elas a mais famosa sem sobra de dúvidas foi o “Auto da Compadecida” (1955).

As aventuras de João Grilo e Chicó são conhecidas e amadas pelo povo brasileiro, não só por conta das três versões cinematográficas produzidas no país, mas especialmente pela capacidade do escritor de muito bem captar aspectos da psicologia do brasileiro. O humor com que encaramos os problemas da vida. A esperteza e sagacidade que orientam a ação dos personagens quando confrontados com situações extremas. Um sentimento religioso mestiço, envolvendo santos da igreja católica que nos aparecem em sua forma mais íntima e humana, conversando como gente, inclusive apresentando um Jesus Cristo negro de pele. A não presença de heróis, mas de homens com as suas fragilidades e pecados, apenas compreensíveis e perdoáveis pela misericórdia divina.

Estas características seriam posteriormente sintetizadas pelo Movimento Armorial (1970) idealizado pelo escritor para propor realização de uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular.

A peça “A Pena e a Lei” (1957) retoma o fio condutor do “Auto da Compadecida” e suscita a ligação entre o humano e o divino novamente através do cômico. Nas palavras do escritor paraibano, trata-se uma “Tragico-comédia-lírico-pastoril”, qualificação que pode ser estendida para outros trabalhos de Suassuna. E, nessa peça em particular, a descrição de personagens que enfrentam num momento a justiça dos homens para, depois, confrontarem-na com a justiça divina.

“A Pena e a Lei” foi concebida para ser apresentada como os espetáculos de mamulengo nordestinos: são aqueles conhecidos fantoches de pano que servem de atores e são conduzidos por varas e barbantes por pessoas que dão voz e movimento aos bonecos.

Como se trata de uma espécie de ventrículo, consta que o nome “mamulengo” foi uma adaptação da expressão “mão mole”.

O primeiro ato da peça dá-se com os atores de mamulengo: é a fase propriamente terrena da peça em que os personagens são apresentados em suas relações puramente humanas. Surge-nos um triângulo amoroso envolvendo Marieta, o delegado Rosinha e o fazendeiro Vicentão. Ambos prometem travar um duelo em nome do coração da mulher desejada. Ocorre que o subtítulo da peça é “a inconveniência de ter coragem”: ambos se arvoravam como os mais valentes e corajosos da vila de Taperoá mas, estimulados e manipulados pelo negro Benedito (que também ama Marieta), são desmascarados na frente da dama já que ambos fogem do combate pelo medo da morte. E Benedito, pouco antes de tomar a mão da donzela pela sua esperteza, se vê preterido por Pedro, indicado que a sua mesma vivacidade derrotou o oponente mas foi derrotada pelo acaso.

O segundo ato da peça propõe ser uma espécie intermediária entre o mamulengo e o teatro ordinário feito por homens de carne e osso. Agora, os personagens representarão como gente, mas imitando bonecos, para indicar que aqui na terra somos seres grosseiros, mas com algo de divino dentro de si.

Neste ato vê-se o julgamento de um roubo (ou melhor diria ser um furto) de um novilho. A denúncia do crime foi feita pelo fazendeiro Vicentão que acusa um cabra seu chamado Joaquim de ter-lhe tomado o animal. Na delegacia, acusação e defesa formulam suas alegações e suscitam testemunhas. O julgamento do delegado, conforme a justiça dos homens, é comicamente corrupto: a opinião do juiz Rosinha varia de acordo com agrados em dinheiro e bens que lhe são concedidos pelas partes litigiosas.

E o terceiro ato da peça corresponde ao momento do julgamento dos homens perante Deus, de forma muito parecida com os últimos instantes do “Auto da Compadecida.”. Todos os personagens estão mortos e se vêm na presença do filho de Deus, que no caso é ninguém menos do que o dono do mamulengo. Por outro lado, nesta parte os atores deixam de ser bonecos e comportam-se totalmente como pessoas. E ao invés de serem julgados, em seu desespero diante da notícia da morte, acusam Deus por todos os maus que passaram em vida.

Novamente a temática da justiça aparece, agora não mais institucionalizada na sociedade dos homens mas em sua dimensão atemporal e perfeita. Deus é acusado pelos homens e aceita ser colocado na condição de acusado em um processo judicial celeste.

E para resolver a lide, formula perguntas aos homens na condição do seu próprio acusador:

– Vale a pena fazer parte da vida, sabendo que a morte é inevitável?

– Vale a pena ser mergulhado nesse espetáculo turvo e selvagem, sabendo que o mal assim marca o sol do mundo?

– Vale a pena viver, sabendo que a vida é um dom obscuro, que nunca será inteiramente entendido e captado em seu sentido enigmático?

E, por fim, Deus questiona a todos: se pudessem viver, viveriam novamente? Pergunta a que todos respondem afirmativamente acarretando a sumária absolvição de Deus.

* Os artigos aqui reproduzidos não expressam necessariamente a opinião deste Diário

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