Oriente Médio

Resistência palestina nunca esteve tão forte

Comentarista político palestino acredita que não há esperança para a Palestina e que nada possa ser feito, contrariando a realidade

No dia sete de outubro deste ano, data de comemoração de dois anos da operação do Hamas Dilúvio de Al-Aqsa, o jornalista e ativista palestino Muhammad Shehada publicou uma coluna de opinião no sítio +972 Magazine intitulada “Dois anos após 7 de outubro, a Palestina se tornou um cemitério de estratégias fracassadas” na qual analisava os possíveis desdobramentos de um cessar-fogo que acabou por acontecer.

A matéria, no entanto, é dotada de um pessimismo descabido. Para Shehada, a população em Gaza estaria completamente contraria ao Hamas e o restante da resistência após o genocídio, a ação do dia sete de outubro de 2023 não teria conquistado nada de positivo para a causa palestina e, diante da suposta “estratégia” de aliança da Autoridade Palestina em relação a “Israel”, os palestinos não teriam mais o que fazer a não ser esperar pela morte e o total domínio de seu país pela colonização.

O texto se inicia com:

Dois anos após o genocídio implacável de Israel, o que nos resta não é apenas um rastro de corpos e ruínas, mas também um colapso brutal do próprio significado. Palavras como “atrocidade”, “cerco”, “resistência” e até mesmo “genocídio” foram esvaziadas por meio da repetição, incapazes de carregar o peso do que os palestinos têm suportado dia após dia, noite após noite.

O texto segue com a citação de algumas das atrocidades que familiares do autor passaram e sua transformação em “esqueletos ambulantes” como:

Aqueles que conseguem escapar deste campo de concentração estão fisicamente transformados. Recentemente, encontrei minha prima nas ruas do Cairo, e não a reconheci. Uma vez uma mulher alta e saudável na casa dos 40 anos, agora ela estava reduzida a pele e osso, seu rosto enrugado e escurecido, seus olhos fundos e pálidos. Minha avó de 77 anos também saiu como um esqueleto e tem estado acamada desde então.

Após citar os horrores cometidos contra os palestinos por parte de “Israel”, o autor chega ao centro de seu texto, comentando sobre dois tipos de pensamento divergentes que teriam surgido em Gaza com a esperança do cessar-fogo:

Por um lado, há um crescente ressentimento em relação ao Hamas por ter lançado os ataques de 7 de outubro, mesmo entre os próprios membros e a alta liderança da organização. Vários oficiais árabes me disseram que Khaled Meshaal — um dos fundadores do Hamas e um líder de longa data de seu escritório político — e outras figuras afins da ala moderada da organização descreveram o ataque em conversas privadas como “imprudente” e uma “desgraça”, ao mesmo tempo em que criticaram a forma como o Hamas tem lidado com a guerra.

Essa afirmação não poderia ser minimamente real e é facilmente desmontada após as imagens da resistência com a chegada do cessar-fogo, em que milhares de pessoas acompanham e apoiam os combatentes pelas ruas, celebrando o fim do genocídio.

No entanto, é fato que nem mesmo diante de uma revolução o que se alcança é um pensamento uniforme da população e que as forças que dominam e oprimem um povo sempre conseguem convencer alguns capangas e traidores a se aliarem a eles. Aqui no Brasil, por exemplo, são conhecidos os casos dos capitães do mato que ajudavam os senhores de escravos contra os negros durante o período escravocrata. Em Gaza, não é diferente e, logo após o início do cessar-fogo, os membros da resistência caçaram e executaram aqueles que colaboraram com a ocupação durante o genocídio.

Esses capangas de “Israel”, no entanto, não representam o sentimento da população e sua fácil captura mostra como eles não eram bem vistos pelos palestinos.

O autor continua:

Nesta primavera, também ocorreram vários dias de protestos populares espontâneos contra o Hamas em toda a Faixa de Gaza, exigindo que o grupo encerrasse a guerra a qualquer custo antes de renunciar ao poder. Mas essas manifestações foram, em última análise, de curta duração, especialmente depois que o governo israelense começou a explorá-las tanto para justificar sua campanha militar em andamento quanto para distrair das atrocidades no terreno.”

Se isso fosse verdade, “Israel” teria feito uma enorme propaganda dos protestos e encurralado a resistência. No entanto, eles não aconteceram. O que, sim, aconteceu, foi que alguns protestos aconteceram em Gaza e alguns indivíduos proferiram gritos contra o Hamas.

Os protestos, no entanto, não eram voltados contra o Hamas e nem sequer sabemos quem eram os indivíduos, se pagos pela ocupação, se militantes da Autoridade Palestina ou o que quer que fossem. Ainda assim, o número de demonstrações é ridículo, não passando de um punhado.

O segundo ponto do autor, entretanto, prova que a tendência local é a de que o povo local passe a apoiar ainda mais o Hamas:

No entanto, ao mesmo tempo, o genocídio de Israel e a ameaça existencial de expulsão em massa de Gaza transformaram alguns dos detratores mais fervorosos do Hamas em seus apoiadores mais fortes. Há um medo generalizado, mesmo entre aqueles que são críticos de 7 de outubro, de que, se o Hamas for esmagado, Israel ocupará Gaza indefinidamente com mínima oposição da comunidade internacional. De acordo com essa visão, apenas uma insurgência militar contínua do Hamas pode impedir a tomada permanente de Israel e a completa limpeza étnica do enclave.”

Na sequência, ele cita alguns supostos casos de pessoas que passaram a apoiar o Hamas:

Um caso em questão é o de uma mulher chamada Asala, que tinha apenas 7 anos quando militantes do Hamas mataram seu pai, um coronel da Autoridade Palestina (AP), durante o conflito Hamas-Fatah de 2007. Essa perda devastadora deixou uma marca indelével nela, alimentando um profundo ódio pelo Hamas que ela carregou até a vida adulta. Antes de 2023, ela criticava consistentemente o Hamas nas redes sociais nos termos mais fortes possíveis, mesmo enquanto permanecia em Gaza. Mas à medida que a ofensiva de Israel se intensificou, ela começou a elogiar os militantes do Hamas por desafiar a presença do exército israelense em Gaza e por buscar vingança.

Da mesma forma, Mohammed, um jornalista investigativo de Gaza que foi sequestrado e torturado pelo Hamas, recentemente se tornou um defensor vocal das facções de resistência armada em Gaza. Ele me disse que o genocídio de Israel, totalmente apoiado pelos governos ocidentais, fortaleceu sua crença na resistência armada. “Existem pessoas que nunca se alinharam com o Hamas ou a resistência, mas depois que suas famílias foram mortas por Israel, suas perspectivas mudaram e agora buscam justiça”, disse ele.

É importante destacar que não há garantia alguma de que essas histórias sejam verdadeiras, principalmente pela propaganda de que o Hamas teria matado opositores palestinos e os torturado, o que parece muito mais invenção. No entanto, é interessante pensar que até mesmo opositores de antes do sete de outubro estejam se aliando ao Hamas, o que é bem possível, como vimos, por exemplo, com antigos iranianos fugidos do país após a revolução de 1979 e que, diante dos bombardeios israelenses no país, passaram a defender o Irã e seu governo.

No entanto, na sequência, um pensamento completamente oposto ao que vinha sendo construído no texto se apresenta:

Este apoio à resistência armada persistirá ou até aumentará enquanto o genocídio continuar, ou se o exército israelense permanecer dentro de Gaza após um cessar-fogo, impedindo a reconstrução. Mas se um acordo permanente for assinado que inclua a retirada total de Israel, o levantamento do cerco sufocante de Israel e um horizonte político visível, haveria pouco motivo para os gazenses se apegarem à luta armada. Na verdade, muitos dos que apoiam a insurgência do Hamas serão os primeiros a denunciar o grupo assim que a guerra terminar.

Ele mesmo mostrou como ao longo da guerra, pessoas que são contra o Hamas foram se colocando favoráveis ao grupo, sua tática e sua estratégia. Sendo assim, após a guerra, considerando que o Hamas venceu “Israel” e acabou com o genocídio, a popularidade do grupo tende a crescer ainda mais.

Em que lugar do mundo, após um grupo armado expulsar uma força ocupante, o grupo perdeu prestígio por parte da população local? Tomemos como exemplo a guerra do Afeganistão: logo após a saída dos norte-americanos, que bombardearam o país, estupraram e cometeram um genocídio, era dito que o governo do Talibã seria derrubado pela população. Aqui estamos, quatro anos depois, e o governo do Talibã segue forte.

Ele, no entanto, confundindo tática e estratégia, afirma o seguinte:

O que historicamente deu mais credibilidade entre os palestinos à estratégia de resistência armada do Hamas não foi o apelo à violência ou ao sacrifício, mas sim o fracasso de todas as outras alternativas. A diplomacia, as negociações, a defesa em organismos e tribunais internacionais, a persuasão moral e a resistência não violenta foram todas recebidas com silêncio global, enquanto Israel continua a matar palestinos e a expulsá-los de suas terras.

Antes do genocídio, sempre que eu perguntava a um líder do Hamas por que a organização não reconheceria formalmente Israel e renunciaria à violência, a resposta sempre era a mesma. “Abu Mazen [Presidente da ANP Mahmoud Abbas] fez tudo isso e mais, ele está colaborando com Israel. Você pode nomear uma coisa boa que eles deram a ele em troca?” Eles continuavam descrevendo como Israel não apenas ignora os compromissos de Abbas, mas o humilha, desfinancia, pune e demoniza a ANP.

Agora, no entanto, após a guerra mais longa da história palestina, o Hamas será questionado sobre a mesma coisa: O que vocês conseguiram com tudo isso?

É preciso, primeiro, esclarecer a confusão. A estratégia remete aos objetivos de um grupo político, enquanto a tática remete aos meios que o grupo utiliza para esses fins. O Hamas e a Autoridade Palestina divergem em ambos. Estrategicamente, tendo como ponto principal, o Hamas quer o fim de “Israel” e a independência da Palestina, enquanto a Autoridade Palestina tem como objetivo estratégico a criação de um Estado palestino paralelo a “Israel”, pelo menos é o que a AP diz, apesar de que o que vemos é simplesmente a subordinação do grupo à ocupação.

Em relação à tática, o Hamas pretende alcançar seus objetivos pelas armas, enquanto a AP pretende -em tese, sempre bom frisar- criar o Estado palestino através de negociações com a ocupação.

O que trouxe mais resultados? O melhor resultado que a AP já conseguiu em sua história, que foi um assento na ONU, somente veio após as ações do Hamas. Antes disso, nada foi conquistado. Como o próprio autor afirma em sua matéria, “Israel” jamais parou de avançar sobre a Cisjordânia e a “coexistência” entre a AP e o Estado ocupante apenas gerava, na prática, uma guerra permanente contra a população palestina.

O Hamas, por sua vez, tendo vários objetivos claros após a ação do sete de outubro, conquistou vários deles. Por exemplo, os acordos de normalização das relações entre “Israel” e os países árabes foram por água abaixo; a imagem de “Israel” como “única democracia do Oriente Médio”, para lembrar fala de Jean Willys alguns anos atrás, foi completamente destruída e, hoje, a população mundial trata “Israel” como pária; com o cessar-fogo, dois mil prisioneiros palestinos foram ou serão libertados; “Israel” teve de entrar em guerra contra vários atores diferentes da região, como o Hesbolá, Irã e os Huthis do Iêmen (voltaremos a isso mais adiante) perdendo todos os conflitos; por fim, apesar de muitas outras vitórias, “Israel” teve que sair de Gaza, onde o Hamas governa, enquanto sua presença na Cisjordânia, onde a AP supostamente controla, quem manda de fato são os ocupantes.

Depois de comentar sobre alguns conflitos bélicos recentes, mostrando que a guerra é praticamente ininterrupta entre os palestinos e “Israel” há muito tempo, ele completa com o seguinte:

Após 7 de outubro, no entanto, essa estratégia também desmoronou. O que começou como uma confrontação multifacetada limitada terminou quando Israel conseguiu alcançar cessar-fogos com o Hezbollah e o Irã, enquanto a ANP e Israel suprimiram qualquer potencial para uma revolta popular. Agora, são apenas os houthis do Iémen que permanecem ativos como a última frente neste outrora chamado “Eixo da Resistência”.

É uma falácia ou uma forma estranha de ver as coisas. O Hesbolá devastou o norte de “Israel”, com alguns lugares se transformando em locais fantasma até agora, já que os colonos temem voltar. Já o Irã causou a maior destruição da história da ocupação na Palestina até agora, demonstrando que o projeto israelense pode até durar mais alguns anos, mas está em seu fim, já que não consegue mais lidar com as novas potências que surgem na região.

Quem já estudou a guerra do Vietnã, ou a guerra do Afeganistão, por exemplo, consegue notar alguns padrões. Por exemplo: após a revolta do Tet, ficou evidente para o mundo inteiro que os EUA perderiam a guerra e, em 1973, eles começam uma retirada do Vietnã do Sul aos poucos, resultando na catastrófica retirada de Saigon em 1975.

O mesmo aconteceu quando, durante o governo Trump, foi anunciado que os EUA se retirariam do Afeganistão e, alguns anos depois, uma retirada igualmente catastrófica à de Saigon aconteceu.

Apesar da ocupação durar mais alguns anos nos dois casos, o que ficava evidente é que não seria mais possível vencer a resistência pela via militar, o que tornava inviável a continuidade do projeto em ambos os países.

Em relação à Palestina, é evidente a essa altura que “Israel” não consegue lidar com o Eixo da Resistência e não tem mais razão de ser. Foi derrotado militarmente para o Hesbolá na tentativa de invasão do Líbano e nos ataques no norte, foi derrotado pelo Irã na chamada Guerra dos 12 dias, não conseguiu resultado algum contra o Iêmen e, principalmente, foi derrotado militarmente pelo Hamas e os demais grupos da resistência em Gaza.

Isso não quer dizer que “Israel” irá desaparecer imediatamente, nem que não irá atacar algum dos países da região ou até mesmo voltar a bombardear Gaza, mas significa que o Estado ocupante da Palestina não tem mais razão de existir, pois não consegue alcançar seus objetivos estratégicos.

Pode ser que demore alguns anos, mas ficou evidente que “Israel” está em seus últimos dias.

Por fim, a desesperança do autor não tem sentido. Ele termina o texto com a afirmação de que nada é possível, justamente diante da maior crise da história da ocupação da Palestina:

No ano passado, perguntei a um líder importante da UE o que ele acha que os palestinos deveriam fazer de diferente e que conselho ele daria à ANP, ao Hamas e ao público palestino. Depois de pensar um pouco, ele se acomodou na cadeira em desespero. “Não há nada que os palestinos possam fazer,” ele admitiu. “Eles tentaram de tudo.”

É óbvio que os governantes da União Europeia diriam isso a ele. Para eles, a única coisa que os palestinos deveriam fazer é esperar a morte, como faz a AP. No entanto, o Hamas demonstrou o que deve ser feito e o fez com maestria, abrindo caminho para a independência da Palestina e o fim do permanente genocídio dos povos da região.

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