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Antônio Vicente Pietroforte
Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).
Coluna
O Sujeito da Enunciação em Terceira Pessoa
Os textos escritos em terceira pessoa soam menos subjetivamente, parecendo mais impessoais
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- poema visual
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- Fernando Aguiar
Em edições anteriores da nossa coluna, discutiu-se a enunciação em primeira pessoa e a colocação da relação “eu-tu” no discurso enunciado, gerando-se efeitos de subjetividade, cuja função discursiva é aproximar o texto de seus enunciadores; em outras palavras, o “eu” que se dirige no texto para o “tu” parece comprometer-se mais com os pontos de vista dele mesmo. Dessa maneira, se a relação pessoal “eu-tu” gera efeitos de subjetividade, cabe indagar quais seriam os efeitos da enunciação em terceira pessoa. Segue um trecho do conto “A causa secreta”, de Machado de Assis:
“E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma cousa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.”
Trata-se da famosa descrição em que a personagem Fortunato tortura um rato, capturado por roer papeis sem importância. A minuciosidade é uma das características argumentativas a conferir objetividade na descrição, mas a ausência de enunciador em primeira pessoa contribui bastante para isso; nota-se que não há no texto citado um só verbo conjugado na primeira pessoa, todos os verbos estão conjugados na terceira pessoa. Embora em todo discurso sempre haja enunciadores, nos textos em terceira pessoa eles não aparecem marcados no enunciado; apresentadas em terceira pessoa, as posições defendidas não surgem ditas por alguém especificamente, por consequência, o enunciador compromete-se menos com as afirmações, soando mais objetivo e menos pessoal do que em primeira pessoa.
Em monografias, teses, dissertações e trabalhos acadêmicos, o tom do discurso aproxima-se da objetividade. Comumente, em artigos científicos há várias opiniões pessoais disseminadas no texto, mas porque eles são redigidos em terceira pessoa, os autores escondem-se no enunciado e as argumentações subjetivas passam por objetivas. Convém ser cuidadoso quando a objetividade é interpretada sendo expressão de verdades; não se pode confundir objetividade com verdade, a objetividade é um efeito de sentido e a verdade é um conceito ideológico, que, em cada discurso, assume valores e significados distintos.
Outra forma de minimizar a presença do enunciador sem apagá-lo totalmente é enunciar em primeira pessoa do plural; um texto na pessoa do “nós” pode ser enunciado por apenas uma pessoa, porém ela tem sua singularidade disfarçada na pluralidade. O “nós”, embora não crie o distanciamento gerado pelo uso da terceira pessoa, torna o texto menos pessoal que o “eu”.
Por fim, não se trata de fixar normas e padronizar tipos de discurso em função de sua enunciação; um diário íntimo, por exemplo, pode conter trechos em terceira pessoa e nada impede que teses de doutoramento contenham parágrafos em primeira pessoa. Trata-se, sobretudo, de ter conhecimento e domínio de mecanismos do discurso e da língua para utilizá-los de modo adequado e com a eficácia argumentativa apta para cada situação.
(Os poemas visuais utilizados na ilustração dessa coluna são do poeta português Fernando Aguiar)
*As opiniões dos colunistas não refletem, necessariamente, as do Diário Causa Operária