Em artigo intitulado Moraes está dando corda para Bolsonaro se enforcar, publicado pelo Brasil 247, o jornalista Alex Solnik defende a tese de que Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), estaria preparando uma espécie de armadilha jurídica para o ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL). Diz Solnik:
“Eu acho que ele está deixando Bolsonaro fazer o que quer entre muitas aspas. Dependendo de seu comportamento (e de seus fãs), ele poderá sofrer medidas cautelares mais duras do que a proibição de se comunicar com os demais investigados até o julgamento e a condenação final da qual ninguém, em sã consciência, duvida nem considera injusta. Moraes está dando corda para Bolsonaro se enforcar.”
Dito de outra forma, o jornalista considera que Moraes já poderia ter determinado a prisão de Bolsonaro, ou, ao menos, ter imposto medidas coercitivas mais duras, mas preferiu não fazê-lo para que o ex-presidente produzisse mais provas contra si. O objetivo, portanto, seria o de, em vez de condenar Bolsonaro a uma pena leve, reunir tantas provas contra o ex-presidente que o permitisse mofar na cadeia.
O raciocínio de Solnik desperta muitas questões. A primeira delas, naturalmente, é: será que cabe a um juiz “escolher” a hora de prender alguém? E mais: cabe a um juiz “dar corda” para que uma pessoa incorra em uma prática criminosa?
Se considerarmos que sim, estaremos admitindo que o papel de um juiz, em um regime dito republicano, não é o de julgar imparcialmente o mérito de um determinado processo. Se o juiz se dispõe a “armar” contra o réu, o juiz é, por definição, parte interessada.
Em qualquer processo normal, as provas contra o réu devem ser apresentadas pela parte que lhe acusa. Seja o Ministério Público, seja o promotor, ou seja um advogado, a depender do tipo do processo. Assim como cabe à defesa do réu apresentar tudo aquilo que considere necessário para demonstrar a inconsistência da acusação.
Ao “armar uma arapuca” para Bolsonaro, Moraes subverte toda a ordem jurídica. O objetivo não é mais fornecer um julgamento justo e isento, mas, em primeiro lugar, garantir a mais dura pena possível ao réu. Moraes, se agir conforme diz Solnik, age já como se tivesse definido que Bolsonaro é culpado, independentemente de qualquer julgamento. Moraes atira à lata do lixo o princípio de in dubia, pro réu, e reformula o regime jurídico para: todos são culpados até que se prove o contrário.
O que confunde Solnik, e acaba fazendo com que defenda essa aberração jurídica, é o fato de que Bolsonaro é um inimigo político seu. Mas basta substituir o caso para que a ilegalidade se torne evidente: quando o juiz Sergio Moro orientou Deltan Dallagnol, no âmbito da Operação Lava Jato, conforme demonstrado em mensagens vazadas por Glenn Greenwald e o Intercept Brasil, não era aquilo uma demonstração da irregularidade da operação? O processo não foi visto como viciado e, portanto, inválido?
A mera hipótese formulada por Solnik – sem qualquer crítica a Moraes – demonstra uma vez mais que, em nome de um suposto combate ao bolsonarismo, todo um setor da esquerda vem defendendo um programa reacionário no que diz respeito ao Estado brasileiro.
Também chama a atenção que o artigo de Solnik, além de ser uma defesa do total abuso de poder de Moraes, é uma tentativa envergonhada de defender o ministro careca em todas as suas ações. Solnik, que é uma espécie de torcedor de sofá da “luta” do STF contra o bolsonarismo, desenvolveu tal tese para mostrar o quanto Moraes estaria comprometido com o combate à extrema direita:
“Moraes tem experiência em lidar com organizações criminosas, como essa que tentou virar a mesa e impedir a posse do presidente eleito. Os mais afoitos, aqueles que defendem a democracia mas na hora H preferem soluções autoritárias, poderão ver nessa convocação de Bolsonaro alguma dose de leniência de Moraes, ‘está deixando Bolsonaro fazer o que ele quer’.”
Em outras palavras: confiem cegamente no Xandão porque, ainda que ele não aja contra Bolsonaro, ele sabe o que está fazendo. Ora, se fosse verdade que Bolsonaro está organizando um golpe militar, e esse golpe não fosse reprimido pelo “bastião da democracia”, que seria o STF, Alexandre de Moraes não poderia mais ser apresentado como grande herói da esquerda. E daí vem a preocupação de Solnik.
Alexandre de Moraes, ao mesmo tempo em que é um dos principais responsáveis pela liquidação dos direitos democráticos no Brasil, nunca fez nada de efetivo para impedir o avanço do bolsonarismo. Nas eleições de 2022, por exemplo, quando, concretamente, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) tentou impedir prováveis eleitores de Lula de comparecerem às urnas, Moraes nada fez.
E é o que sempre irá acontecer. Enquanto a “luta contra o bolsonarismo” for prender uns pobres coitados como os condenados do caso do 8 de janeiro, perseguir figuras secundárias do bolsonarismo ou mesmo perseguir o ex-presidente Jair Bolsonaro para controlar as eleições municipais, Moraes se mostrará eficiente. Quando se tratar de uma luta contra a extrema direita de fato, Moraes não fará absolutamente nada.
Neste sentido, a confiança cega no “general Xandão”, pregada por Solnik, é um imenso desserviço. Essa política serve apenas para desarmar a esquerda perante os seus inimigos, que, embora hoje posam de “civilizados”, uma hora se voltarão contra ela.