Em artigo publicado pelo portal Esquerda Online, Henrique Canary, militante da corrente interna Resistência, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), apresenta sua crítica ao que chama de “partido-embrião”. Segundo ele, a teoria do “partido-embrião” não está “formulada em nenhum lugar específico, mas existe e prospera”. Isto é, estamos diante de uma teoria tirada de sua própria cabeça.
A teoria do “partido-embrião” estabeleceria que “uma pequena corrente de ativistas, que em geral conta com algumas centenas de militantes (às vezes até dezenas), é – nada mais, nada menos – do que o próprio “embrião” do futuro partido revolucionário que dirigirá as massas, tomará o poder, exercerá a ditadura do proletariado, construirá o socialismo e chegará ao comunismo”. Isto é, grosso modo, é uma teoria que explicaria o desenvolvimento histórico do partido bolchevique – o modelo de um partido revolucionário. Afinal, o partido teve início como uma fração de um outro partido, passou por momentos em que seus militantes eram poucos, sobreviveu na clandestinidade, tornou-se um partido de massas e tomou o poder.
Mas se a “teoria do partido-embrião” nada mais é que uma simplificação grosseira do processo que levou à primeira revolução proletária da história, para que o militante do Resistência decidiu criá-la? O motivo é simples: Canary a criou porque é contra a luta por um partido revolucionário, nos termos em que os bolcheviques travaram essa luta. No entanto, como, ao criticar abertamente o partido bolchevique, Canary seria facilmente desmascarado como antimarxista, criou uma teoria à parte para que pudesse criticá-la.
Dito isso, vejamos, agora, qual é a sua crítica.
Segundo Canary, os defensores do “partido-embrião” seriam “arrogantes”, pois pressupõe que “a futura revolução brasileira (ou em qualquer outro país onde essa teoria exista) será feita por uma única organização socialista em oposição a todas as outras”. A teoria do “partido-embrião” seria, portanto, “uma concepção messiânica, que afirma que uma organização socialista cresce linearmente desde um pequeno grupo de propaganda até chegar à “maturidade” (a possibilidade da disputa pelo poder), exatamente como um embrião simplesmente cresce e se torna um indivíduo adulto”.
Ora, se defender que “uma única organização socialista em oposição a todas as outras” fará a revolução é ser “arrogante”, então Vladimir Lênin e todos os dirigentes bolcheviques são o suprassumo da arrogância. Afinal, essa sempre foi sua concepção de partido. Canary pode achar “arrogante” ou o que for, mas o fato é que todos os marxistas sempre lutaram pela construção do partido revolucionário, e não por uma frente de agremiações que se dizem revolucionárias. Basta olhar para o cenário da chamada “extrema esquerda” brasileira e ver como essa ideia não se aplica.
Entre as organizações que se consideram “revolucionárias”, há desde o Partido da Causa Operária (PCO), que apoia a resistência palestina e que apoia os povos cubano, iraniano, venezuelano e nicaraguense contra o imperialismo, ao Partido Socialistas dos Trabalhadores Unificado (PSTU), que calunia a resistência palestina e que apoia o imperialismo contra Cuba, Irã, Venezuela e Nicarágua. Só por esse exemplo, fica claro porque é necessário um partido revolucionário. Do contrário, a federação que Canary propõe será completamente ineficiente para uma luta contra os inimigos dos trabalhadores.
A luta pela revolução sempre foi a luta em defesa do programa revolucionário. E a luta pelo programa é, por sua vez, a luta pela construção do partido revolucionário. De que outro modo seria possível levar adiante a luta pelo programa? Segundo o autor, a teoria do “partido-embrião” seria “arrogante” porque considera que “nos construiremos contra tudo e contra todos, na defesa do verdadeiro programa e da verdadeira estratégia socialista e revolucionária”. Mas como organizar os trabalhadores em torno da revolução proletária sem, necessariamente, polemizar com os charlatães que falam em nome do socialismo, mas que estão ao lado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na questão da Ucrânia? E como não fazer essa distinção entre a política revolucionária, que é apoiar a Rússia contra a Ucrânia, da política reacionária do PSTU se não for por meio da agitação e da propaganda de um partido revolucionário?
Os marxistas sempre lutaram, é fato, pela unidade da classe operária. Mas essa unidade, para os marxistas, deveria se dar em meio à defesa do programa da classe operária, e não por meio de uma unidade em abstrato. Se houver duas organizações com o mesmo programa, o que é raro, pode-se discutir, de maneira mais específica, uma unidade organizativa. No entanto, se os programas forem diferentes, a unidade deve se dar na ação, e não do ponto de vista organizativo.
Para Canary, a esquerda teria desenvolvido a concepção do “partido-embrião” porque teria sido incapaz de analisar o que aconteceu na Revolução Russa de 1917. Diz ele:
“A fração bolchevique do Partido Operário Social-Democrata Russo surgiu em 1903 e se manteve ao longo dos anos como um núcleo relativamente estável de dirigentes mais ou menos homogêneos política e ideologicamente. E de fato foi essa fração que tomou o poder em outubro de 1917 “contra tudo e contra todos”, exerceu o poder e dirigiu a transformação socialista da sociedade de maneira monopolística. Foi assim que aconteceu. A grande questão é: era esse o plano? Sustentamos que não. Os bolcheviques exerceram o monopólio político na URSS, mas esse nunca foi seu projeto. Lênin chegou a Petrogrado em abril de 1917 e defendeu, em primeiro lugar, a passagem do poder de Estado aos sovietes, cuja maioria era socialista-revolucionária e menchevique, e essa linha de chamar a direção majoritária do movimento a tomar o poder permaneceu ao longo de todo o ano de 1917. Alguém poderia argumentar que se tratava apenas de uma tática ou manobra de Lênin para disputar a direção do movimento e conquistar a totalidade do poder para o partido bolchevique. Mas isso não é assim. Várias vezes ao longo de 1917, Lênin repetiu que sua estratégia era o poder soviético, não o poder deste ou daquele partido, desta ou daquela fração”.
Quem não entendeu o que aconteceu na Rússia em 1917 foi Canary. De fato, os bolcheviques empreenderam um esforço para que distintas frações do movimento operário integrassem o governo revolucionário. No entanto, há uma grande diferença entre um governo e o partido revolucionário. O governo é o governo de toda uma sociedade. Em um Estado Operário, nada mais normal que o partido revolucionário governar com outras organizações, desde que elas representem de fato um setor do movimento operário. As tentativas dos bolcheviques mencionadas por Canary, portanto, nunca foram tentativas de formar uma federação de “partidos revolucionários”, mas sim o de estabelecer um acordo em torno do governo.
Já em relação ao que os bolcheviques defendiam para o partido revolucionário, Canary vai completamente na contramão. Diz ele:
“Com o ímpeto de provar a correção de certas posições absolutamente transitórias, trabalha-se contra todo o movimento socialista, porque é preciso triunfar sobre os ‘oportunistas’ e ‘falsos discípulos’. O objetivo histórico passa a ser não a vitória da causa, mas a vitória sobre as correntes ‘inimigas’ no interior do próprio movimento socialista'”.
Ora, mas isso está em contradição com o que o próprio autor narrou sobre os bolcheviques. Se é fato que os bolcheviques procuraram uma aliança com outros setores da classe operária, isso apenas comprova que, para que houvesse a revolução, era necessário um “partido-embrião”! Afinal, se a proposta de uma unidade na luta contra os capitalistas teria partido dos bolcheviques, está comprovado que, para haver tal unidade, seria preciso haver o tal “partido-embrião”. Seria precisa uma organização que levasse adiante uma luta e que, nesta luta, propusesse uma determinada aliança.
Diz ainda Canary:
“Não será muito mais provável que a futura organização revolucionária (ou frente de organizações revolucionárias) seja o desenvolvimento caótico, desastrado, cheio de rupturas e fusões de uma série de organizações, grupos, movimentos, correntes, muitas das quais sequer existem hoje? Em qual exemplo histórico uma organização revolucionária caminhou firme e retamente rumo ao seu destino final?”.
A política de Henrique Canary já foi colocada à prova e falhou miseravelmente. Em oposição ao modelo bolchevique, em que um partido levou adiante a luta pela unidade da classe operária em defesa do programa revolucionário, a Revolução dos Cravos, que acaba de completar 50 anos, fracassou justamente pela ausência desse partido. Uma vez que as condições objetivas para uma revolução estavam estabelecidas e, efetivamente, uma revolução tomou conta de Portugal, o processo acabou refluindo porque as organizações envolvidas foram incapazes de levar adiante um programa revolucionário. E qual o grande motivo para isso? A ausência de uma organização suficientemente esclarecida sobre que programa a classe operária deveria ter e capaz de lutar por esse programa.
A revolução que serviu de modelo para a luta da classe operária em todo o mundo seguiu o caminho oposto. Não há melhor forma de compreender o que os bolcheviques pensavam acerca da unidade da classe operária que analisando a trajetória do revolucionário Leon Trótski.
Para Lênin a incompatibilidade entre o que bolcheviques e outras frações do Partido Social-Democrata Russo defendia era tal que uma unidade organizativa era impossível. Isto é, bolcheviques e mencheviques não poderiam ser parte do mesmo partido porque tinham programas absolutamente distintos. Esse não era, no entanto, o caso de Leon Trótski e de outros militantes. Quando Trótski se une aos bolcheviques, a consideração de Lênin não é a de que dos grupos revolucionários teriam deixado de lado as suas diferenças programáticas e teriam chegado a um determinado acordo prático. A consideração é a de que, na verdade, só foi possível uma unidade porque fundamentalmente os programas eram os mesmos.
Em reunião do Comitê Central do Partido Bolchevique em 1917, disse Lênin, sobre uma eventual coligação entre bolcheviques e outras frações.
“Trótski disse há já bastante tempo que a coligação era impossível. Trótski compreendeu-o e, desde então, não houve melhor bolchevique que ele”.
Em outras palavras, Trótski se incorporou ao partido bolchevique quando já era, na prática, um defensor do programa bolchevique.
No final do artigo, Henrique Canary acaba por apresentar uma posição filosófica que serve de base para toda a sua confusão sobre o partido revolucionário. Diz ele:
“O marxismo é marxismo porque soube romper com as concepções teleológicas do velho hegelianismo e afirmar com toda a coragem que a história é imprevisível porque é ação humana, relativamente limitada pelas condições do presente que foram herdadas do passado. É hora de abandonar essas ideias também no campo da construção partidária”. Não há destino nem escolhidos, nenhuma de nossas organizações carrega consigo as tábuas da salvação. É tempo de paciência, humildade e confiança no processo histórico” [grifo nosso]”.
Trata-se de uma posição, em primeiro lugar, suicida. Como ter “confiança no processo histórico” se a história seria “imprevisível”?! Ao dizer que a história não é previsível, Canary se choca com uma das bases do marxismo, do materialismo dialético. Se a história é imprevisível, não há uma ciência social. O marxismo não passaria, portanto, de apenas uma teoria acadêmica.
Se levarmos a sério o que diz Canary, então, realmente, não há como se construir um partido revolucionário. Se a história é imprevisível, não haveria por que Karl Marx escrever O Capital e tentar descrever a anatomia da sociedade capitalista. Menos ainda haveria motivo para alguém como Vladimir Lênin organizar um partido que estivesse preparado para tomar o poder em uma revolução proletária. Afinal, não seria possível determinar se essa tal revolução irá mesmo acontecer, não é mesmo?
O que Henrique Canary faz, no final das contas, é apresentar uma teoria que sirva de pretexto para o oportunismo. Uma teoria cujo resumo é: nada de construir um partido revolucionário, nada de programa revolucionário. Em outras palavras, que vigorem os acordos e interesses escusos e imediatos da política burguesa.