O portal Esquerda Online, que pertence à corrente interna do PSOL chamada Resistência, publicou um artigo assinado por Vinícius Machado com o título de O pensamento anticolonial e antirracista de Lênin. Diante do centenário da morte do revolucionário russo, o autor tenta atribuir a Lênin, embora sem grande sucesso, uma espécie de título de precursor do identitarismo moderno, do chamado “decolonialismo”.
“Muitos pensadores e intelectuais ao longo do século XX destacaram a virada fundamental do marxismo após a vitória da Revolução Russa, em 1917, e a fundação da Internacional Comunista, em 1919: a ruptura com uma visão eurocêntrica predominante na Segunda Internacional. O movimento comunista, comandado por seu principal dirigente, Lênin, vai defender a centralidade da luta anti-imperialista, anticolonial, antirracista e de libertação nacional.”
Segundo o autor, Lênin e a Terceira Internacional fundada em 1919 teriam rompido com uma “visão eurocêntrica”. A Segunda Internacional, o autor não explica se toda ela, ou apenas em sua fase decadente, sofreria desse “mal” sanado por Lênin a partir da Revolução Russa.
A Segunda Internacional foi uma monumental organização operária e revolucionária fundada por Friedrich Engels e outros socialistas em 1889. A organização tinha como objetivo agrupar as principais organizações operárias e socialistas do mundo para a luta política. A Segunda Internacional cumpre um papel revolucionário fundamental na formação e na consolidação de grandes partidos operários, até que, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914, suas lideranças se corrompem e apoiam as burguesias imperialistas de seus países.
Essa degeneração política da Segunda Internacional é o que leva ao rompimento de várias organizações e, em 1919, à criação da Terceira Internacional. A ruptura é, portanto, política.
O autor do texto, ao não distinguir exatamente de que época está falando, dá a entender que sua acusação de “eurocentrismo” está voltada contra toda a Segunda Internacional.
A formação da Terceira Internacional tinha para Lênin e os revolucionários uma necessidade bem concreta: resguardar as tradições revolucionárias da própria Segunda Internacional. Nesse sentido, Lênin não renuncia à herança desta, mas aos degenerados que mergulharam a organização na lama, que colocaram a organização como um verdadeiro instrumento da burguesia de seus países para ludibriar a classe operária.
Ao ler o texto do autor, temos a impressão que Lênin teria criado uma espécie de “novo marxismo”, agora com “preocupações anti-imperialistas, antirracistas” etc.
Se se pode acusar a Segunda Internacional de ser “eurocêntrica”, também poderíamos acusar Lênin de sê-lo, já que nada mais fez do que seguir os ensinamentos de Marx, Engels e outros revolucionários da Segunda Internacional.
Essa é, aliás, a acusação do identitarismo contra os marxistas. A tentativa do Resistência de justificar e explicar essa acusação mostra o quanto o identitarismo está impregnado nos grupos pequeno-burgueses ditos “marxistas”.
Não apenas por isso. A própria defesa de Lênin feita pelo Resistência já demostra o caráter antimarxista do grupo. “Eurocentrismo” sequer é um conceito marxista. Não era na época de Lênin, quando sequer existia, não é hoje. O autor, no entanto, de maneira anacrônica, atribui a Lênin uma teoria que não é a dele.
O “eurocentrismo” é um conceito acadêmico absurdo que basicamente quer dizer que determinada ideologia, política ou ponto de vista tomaria a Europa como centro. Ou seja, para os teóricos do “eurocentrismo”, deveríamos levar em conta de maneira igual e “democrática” todas as ideias vindas da Europa, mas também da África, da Ásia, da América Latina etc. A ciência, ou seja, a busca pela verdade, é substituída por uma colcha de retalhos de teorias diversas. Não há verdade, ou pelo menos não há verdade se ele vier da Europa. Uma enorme besteira.
Por isso, o próprio marxismo é vítima dos teóricos do “eurocentrismo”. O autor, ao tentar defender Lênin dessa acusação, acaba abrindo um flanco e admitindo que antes de Lênin o marxismo era – não sabemos quanto – “eurocêntrico”.
“Foi só com a Revolução Russa, a União Soviética e a Internacional Comunista que o marxismo se tornou realmente mundial, com a constituição de várias organizações comunistas na América Latina, Ásia e África. Entretanto, quando analisamos com atenção os escritos de Lênin, observamos que antes mesmo da vitória da revolução o líder bolchevique já abordava a questão colonial e a luta pela autodeterminação das nacionalidades oprimidas em suas produções teóricas.”
Vejam só esse trecho do texto. Como o marxismo passou a ter organizações em continentes fora da Europa e dos EUA, então ele não é mais “eurocêntrico”. Segundo esse raciocínio, foi a vontade individual e teórica de Lênin que fez esse fenômeno acontecer, não a força da revolução mundial da qual Lênin era a expressão máxima naquele momento.
A constituição tardia de partidos comunistas nos países atrasados tem como explicação o fato de que a classe operária se desenvolveu primeiro nos países de capitalismo avançado. Na própria Rússia, o Partido Social-Democrata apareceu apenas no início do século XX. Isso não tem nada a ver com “eurocentrismo”, mas com o desenvolvimento das condições materiais na Europa, na Rússia e nos demais continentes.
Esse fato histórico e a experiência revolucionária num país atrasado como a Rússia foi o que ajudou a alavancar a luta socialista no mundo todo. Ao mesmo tempo, despertou a análise marxista da revolução nos países atrasados. De fato, nesse ponto específico temos que concordar com o autor do texto. Lênin tem papel fundamental no estudo do capitalismo e da revolução nos países atrasados, na análise do caráter da luta de classes nesses países, do problema do imperialismo e da luta anti-imperialista, da questão nacional, da luta pela emancipação dos negros e outros setores oprimidos.
Isso, no entanto, não tem nada a ver com “eurocentrismo”. Tem a ver com o marxismo assim como ensinaram Marx e Engels e desenvolvido por Lênin e Trótski.