O presente texto é uma continuação do artigo Nem com o genocídio palestino PSTU aprendeu o que é imperialismo, publicado na edição de ontem (17 de janeiro) do Diário Causa Operária. No texto anterior, demonstramos que, ainda que o PSTU procure apresentar uma posição favorável aos palestinos, diante da pressão da opinião pública contra o Estado de “Israel”, a agremiação não conseguiu abandonar as diretrizes centrais de alinhamento político e até mesmo ideológico ao imperialismo.
Demonstramos, por exemplo, que o PSTU, após todas as barbaridades cometidas por “Israel” sob a alegação de ser “a única democracia do Oriente Médio”, se mostrou incapaz de criticar a “defesa da democracia” que é levada adiante pelo imperialismo em países como a Venezuela. Demonstramos, também, que, mesmo após um grupo guerrilheiro como o Hamas ter conseguido deflagrar uma operação extraordinária como a Dilúvio al-Aqsa, o PSTU é incapaz de compreender a fragilidade em que se encontra o imperialismo, de tal forma que se nega a admitir que a operação militar russa na Ucrânia seria mais uma prova dessa crise de dominação.
Agora, iremos demonstrar, polemizando novamente com o texto Algumas polêmicas necessárias ao redor da guerra na Palestina, do dirigente morenista Eduardo Almeida, como esse conjunto de preconceitos pró-imperialistas conduzem o PSTU a uma confusão total no que diz respeito ao nacionalismo no Oriente Médio.
O último capítulo do artigo de Eduardo Almeida carrega como título Estar na luta junto aos palestinos é apoiar o Hamas?. O texto não responde a pergunta, mas já adiantamos: para o PSTU, não. Essa discussão, contudo, será feita futuramente.
Eduardo Almeida inicia o capítulo de uma forma verdadeiramente cômica: “em uma guerra, é necessário ter um lado”. Não necessariamente. De que lado ficou Vladimir Lênin na guerra entre o Império Russo e os países do eixo? De nenhum dos dois. Sua política era transformar a guerra mundial em guerra civil, para, assim, fazer a revolução em seu país. Ficar do lado da classe operária não significava, para Lênin, necessariamente defender o exército de algum dos países em guerra. No Programa de Transição, Leon Trótski explica que:
“A burguesia imperialista domina o mundo. É por isso que a próxima guerra, no que tem de fundamental, será uma guerra imperialista. O conteúdo decisivo da política do proletariado internacional será, consequentemente, a luta contra o imperialismo e sua guerra. O princípio básico desta luta será: ‘o inimigo principal está em nosso próprio país’ ou ‘a derrota de nosso próprio governo (imperialista) é o mal menor’.”
É errada, portanto, a tese de que é preciso sempre “defender um lado”, no sentido de defender um país, quando há uma guerra. Mas se o PSTU acredita nisso, por que decidiu ficar nem do lado do Talibã, nem do lado dos Estados Unidos na guerra do Afeganistão? Por que decidiu ficar nem do lado da Rússia, nem do lado da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) na guerra da Ucrânia? Aqui, o PSTU denuncia que a sua política de “neutralidade” é, no final das contas, uma farsa. Trata-se de uma política de defesa dos interesses do lado mais forte no conflito.
Para decidir o lado em que deve ficar em um conflito, é preciso analisar de maneira concreta as classes sociais envolvidas. Continuando o mesmo texto, Trótski esclarece a posição que deve ser tomada:
“Mas nem todos os países do mundo são países imperialistas. Ao contrário; a maioria dos países são vítimas do imperialismo. Certos países coloniais ou semicoloniais tentarão, indubitavelmente, usar a guerra para se livrar do jugo da escravidão. No que lhes concerne, a guerra não será imperialista, mas emancipadora. O dever do proletariado internacional será ajudar os países oprimidos em uma guerra contra seus opressores. Este mesmo dever estende-se também à URSS ou a outro Estado Operário que possa surgir antes da guerra ou durante. A derrota de todo governo imperialista na luta contra um Estado operário ou um país colonial é o mal menor.”
Esse é, finalmente, o critério central para definir uma política em relação aos palestinos. Como o povo palestino sequer é dono de um país – e, se fosse, seria um país atrasado, de natureza colonial – e como “Israel” age como advogado dos interesses do imperialismo, a posição correta é o apoio aos palestinos. Esse princípio, portanto, define não apenas a política a ser defendida na Palestina, mas também na Ucrânia, onde o PSTU defende os interesses do imperialismo, na Nicarágua, onde o PSTU defende os interesses do imperialismo, e na Síria, onde o PSTU defende os interesses do imperialismo.
Esse erro do PSTU será decisivo para a sua posição em relação ao Hamas. Quando Eduardo Almeida começa a explicar por que não apoia o partido islâmico, ele afirma que “a retomada da Primavera Árabe, com mobilizações contra as ditaduras da região, inclusive contra a ditadura islâmica do Irã, seria essencial para a luta palestina”.
Para o PSTU, portanto, o conteúdo do conflito entre palestinos e “Israel” não é a luta de um povo contra o imperialismo, mas sim a luta de um povo qualquer contra uma “ditadura”. E, sendo assim, se o que está em jogo é uma “liberdade” em abstrato, e não a libertação do jugo imperialista, a derrubada do regime iraniano seria um avanço na luta dos palestinos!
É um delírio. Não há Estado no mundo que seja mais importante para a luta dos palestinos neste momento que o Irã. É ele o responsável pela maior parte do financiamento e, principalmente, pelo treinamento militar e pela logística de todo o chamado “Eixo da Resistência”. O Irã, por meio de comandantes de grande capacidade, como o general Qassem Soleimani, foi quem mais forneceu as condições materiais para que o Hamas, a Jiade Islâmica, o Hesbolá e os Hutis se desenvolvessem, independentemente das distintas concepções religiosas. O Irã, na medida em que fomentou a criação de exércitos rebeldes fortemente equipados, espalhados por toda a sua região de influência, é, sem dúvida alguma, o maior fator de desequilíbrio do imperialismo no Oriente Médio.
Se a luta dos palestinos é a luta dos árabes contra o imperialismo, o que faria mais sentido: que o regime iraniano permanecesse estável, dando suporte a todos os grupos que estão lutando, ou que o regime desabasse, em nome de uma suposta “democracia”? E mais: todos sabem de onde vem a campanha contra a “ditadura” do Irã. Vem do imperialismo, de sua imprensa venal, de suas think tanks mundo afora. Cabe lembrar que Narges Mohammadi, uma opositora do regime iraniano, recebeu o Nobel da Paz em 2023, o que mostra o quanto o imperialismo tem interesse em apresentar o Irã como uma “ditadura”.
Não custa lembrar também que o erro de apoiar a desestabilização de governos nacionalistas no Oriente Médio já custou muito caro ao PSTU. O partido, em 2013, apoiou com entusiasmo o golpe militar contra o presidente egípcio Mohamed Morsi – Morsi caiu! Grande vitória da mobilização do povo egípcio!, estampou o partido em seu sítio. Não se tratava, assim, de uma luta para que “as massas” superassem um Estado burguês e estabelecesse uma ditadura do proletariado. Na época, o PSTU, em sua sabedoria de gritar “abaixo ditadura” toda vez em que o imperialismo apontava o dedo para um regime nacionalista, considerou a tomada do poder pelos militares como um grande avanço. Até hoje, a mesma junta militar golpista governa o Egito, sendo um dos grandes entraves para que a luta palestina se desenvolva.
Vejamos agora o trecho completo em que Eduardo Almeida menciona a “ditadura do Irã”:
“As duas intifadas são referências necessárias para o atual momento da luta. A retomada da Primavera Árabe, com mobilizações contra as ditaduras da região, inclusive contra a ditadura islâmica do Irã, seria essencial para a luta palestina. Essa não é a estratégia do Hamas, que aposta numa aliança estratégica com o regime iraniano, turco e qatari contra o Estado israelense, ao invés de se apoiar nas classes exploradas e oprimidas desses países e de toda a região.”
Segundo o PSTU, portanto, as intifadas estariam em contradição com a “estratégia” do Hamas. Mas como poderia sê-lo? Foram justamente as intifadas que forjaram o Hamas. Se o Hamas tem o apoio popular que tem hoje, é justamente porque foi a expressão mais radical, mais decidida das intifadas, que só fracassaram porque a principal organização política da época, a Fatá, capitulou perante “Israel”. Subtrair o Hamas das intifadas dará como resultado a Fatá. É esse o grande legado das intifadas para Eduardo Almeida?
E qual seria, também, a contradição entre a Primavera Árabe e o Hamas? A Primavera Árabe, que foi um movimento revolucionário no Oriente Médio, acabou por conduzir a Irmandade Muçulmana ao poder no Egito, organização essa com profundas relações com o povo palestino e de onde o próprio Hamas surgiu. Foi o PSTU, ao apoiar a queda de Morsi – isto é, a contrarrevolução -, que se opôs à Primavera Árabe, e não o Hamas.
Por fim, o PSTU teria de explicar qual o problema do Hamas em se aliar ao Irã e a países como o Catar. Como o Hamas iria obter suas armas, como iria ser capaz de invadir os sistemas de computadores israelenses, como poderia, enfim, organizar a Operação Dilúvio al-Aqsa, sem forjar acordos com aqueles que seriam capazes de provê-lo? Em uma famosa anedota da Revolução Russa, o revolucionário Vladimir Lênin propôs aceitar as armas dos “bandidos ingleses e franceses” para combater os “bandidos alemães”. Se até um acordo prático com o imperialismo é possível, desde que haja objetivos bem definidos, por que o Hamas não poderia aceitar armas de um país como o Irã, que está em conflito com o imperialismo?
Dizer que o Hamas não apoia o movimento de massas é, por fim, uma mentira. O Hamas não é um partido político artificial: ele é um produto das intifadas. É, portanto, a expressão do levante das massas contra “Israel”. E é tão somente por ser apoiado pelas massas que o Hamas vem conseguindo sobreviver, mesmo após 16 anos do criminoso bloqueio à Gaza. E é também por esse amplo apoio que o Hamas é cada vez mais popular na Cisjordânia e ameaça tomar o poder daquela região.
Eduardo Almeida segue, então, com outra mentira: “o Hamas é uma organização que defende um Estado teocrático como outros que existem no Oriente Médio, inclusive o Irã, contra o qual existem lutas de massas das mulheres e do conjunto do povo”. Não há, conforme já explicando, uma “luta de massas das mulheres” contra o regime iraniano. Há, na verdade, uma tentativa do imperialismo de desestabilizar o regime. E não é só isso: dizer que o Hamas defende um Estado teocrático é simplesmente reproduzir o que os sistemas de inteligência de “Israel” divulgam.
O Hamas é, sim, um grupo de inspiração muçulmana – e, portanto, religiosa. No entanto, isso não significa que seu objetivo seja estabelecer um Estado religioso, como hoje é o Estado de “Israel”. Em documento recente, emitido após uma reunião em Beirute, no Líbano, em que participaram o Hamas, a Jiade Islâmica e outras forças da resistência palestina, os grupos se comprometem a:
“Desenvolver e fortalecer o sistema político palestino com base em fundamentos democráticos, por meio de eleições gerais (presidenciais, legislativas e conselho nacional), de acordo com um sistema de representação proporcional completo, em eleições livres, justas, transparentes e democráticas, com a participação de todos, reconstruindo assim as relações internas sobre os fundamentos e princípios da coalizão nacional e parceria nacional genuína.”
Não se trata, de forma alguma, de uma proposta de formação de um Estado teocrático. Cabe ainda ressaltar que, em sua declaração de princípios, o Hamas estabelece que:
“O Hamas acredita e adere à gestão de suas relações palestinas com base no pluralismo, na democracia, na parceria nacional, na aceitação do outro e na adoção do diálogo. O objetivo é fortalecer a unidade de fileiras e ação conjunta com o propósito de alcançar metas nacionais e atender às aspirações do povo palestino.
[…] A sociedade palestina é enriquecida por suas personalidades proeminentes, figuras, dignitários, instituições da sociedade civil, jovens, estudantes, sindicalistas e grupos de mulheres que trabalham juntos para alcançar metas nacionais e construção da sociedade, buscam resistência e realizam a libertação.
O papel das mulheres palestinas é fundamental no processo de construção do presente e do futuro, assim como sempre foi no processo de construção da história palestina. É um papel fundamental no projeto de resistência, libertação e construção do sistema político.”
E ao que o PSTU contrapõe, então, o programa do Hamas? “Defendemos uma Palestina Laica, democrática e não racista, na qual os povos de todas as religiões possam conviver em paz”. Isto é, nada que os grupos islâmicos não estejam propondo.
O motivo que leva o PSTU a insistir em “não apoiar o Hamas” fica claro no seguinte trecho: “além disso, discordamos das características autoritárias do Hamas, que impôs uma verdadeira ditadura em Gaza”. Que características autoritárias seriam essas? O PSTU está em Gaza, para saber exatamente o que acontece lá? É óbvio que não. Eduardo Almeida, aqui, apenas repete, como um cacoete, a necessidade de ecoar toda campanha em prol da “democracia” que é promovida pelo imperialismo.
O fato é que o PSTU não sabe, nem tem como saber os detalhes da condução do Hamas da política em Gaza. E, menos ainda, tem como saber os motivos que levaram o Hamas a tomar as decisões que vem tomando, em meio a bombardeios e bloqueios econômicos. É apenas e tão somente a repetição do que o imperialismo quer que o PSTU fale sobre o Hamas.
Esse vínculo do PSTU com a propaganda imperialista contra o Hamas também fica evidente quando Eduardo Almeida faz a sua crítica ao pacifismo:
“Entendemos por que as pessoas preferem a paz. Em condições normais, todos gostam de paz. Mas quando existe uma violência do opressor, criticar a reação violenta dos oprimidos é aceitar o status quo, a continuidade da opressão. A não existência da paz é produto da guerra deflagrada por Israel contra os palestinos desde 1948. As mortes de civis israelenses são de responsabilidade do estado israelense.”
É fato que a violência dos oprimidos não deveria ser criticada. No entanto, Eduardo Almeida, não fosse um papagaio da campanha imperialista contra o Hamas, deveria também ter dito: as acusações da “violência” do Hamas são, praticamente todas elas, falsas. Ao ignorar as falsificações bizarras promovidas por “Israel”, que acusou o Hamas de estuprar mulheres e de decapitar bebês, Eduardo Almeida já havia demonstrado o seu compromisso com a máquina de mentiras da propaganda de guerra do imperialismo.
O fato de o PSTU fazer questão de explicar que “não apoia o Hamas”, portanto, nada tem a ver com a defesa de um programa marxista, até porque este debate não está colocado. Não estão ocorrendo eleições na Palestina, nem há qualquer necessidade de o PSTU fazer uma pregação de qual seria a Palestina de seus sonhos. O que está em curso é um grande processo de libertação nacional, em que os palestinos estão aprendendo, pela sua própria experiência, quem são os seus inimigos e como derrotá-los. No momento, há um único programa para ser defendido: o fim do Estado de “Israel”. E as balas que irão pôr fim à ocupação sionista não precisarão ser doutrinadas pelo PSTU para que tenham êxito.
As ressalvas do PSTU ao Hamas, portanto, não servem a outro propósito que não seja o de confundir aqueles que estão dispostos a declarar seu apoio incondicional à luta palestina. Não passa da mesma pregação “esquerdista” que faz a Rede Globo, pela direita, ao condenar o “terrorismo” do Hamas.