Na última sexta-feira (26), o escritor gaúcho Jeferson Tenório dedicou sua coluna no UOL a elogiar nosso antigo colonizador, o Estado português. Curioso para um autor que se apresenta como ferrenho crítico do colonialismo, um pensador “decolonial” – sim, sem o s, como em inglês, a língua dos guerreiros anticoloniais do século XXI.
O atual Estado burguês português e seu presidente, Marcelo Rebelo de Souza, praticamente não têm relação – a não ser de origem – com o antigo regime absolutista e Dom João VI, último monarca português a reinar sobre o Brasil colônia; ainda assim, como para os decoloniais a história não avança, nos vemos obrigados a destacar a “capitulação”. Como pode Tenório dar “razão” a Marcelo Rebelo?
É simples. O atual presidente português “reconheceu e admitiu a responsabilidade total do país pelos erros do passado e pelos crimes que resultaram numa das maiores tragédias que a humanidade presenciou“. Um reconhecimento 130 anos após o fim da escravidão. E o colunista aplaude Rebelo por ir além do reconhecimento, do pedido de desculpas. O presidente decolonial reconheceu que se desculpar “é a parte mais fácil”, mas sabiamente deixou a parte difícil para depois.
Mas Tenório tem esperança.
“Marcelo Rebelo dá um passo adiante ao responsabilizar Portugal. Pois não se trata somente de pedir desculpas. Estamos falando em reparação para além das questões simbólicas.”
Será interessante saber como isso se concretizará. Ninguém sério cobraria do povo português uma reparação história por algo acontecido séculos atrás, algo que trouxe pouquíssimos benefícios para essa população, em sua maioria muito sofrida. Basta lembrar que o anúncio de Rebelo acontece logo antes da celebração de 50 anos da Revolução dos Cravos, que libertou Portugal de uma das ditaduras fascistas mais longevas da Europa. Ou Tenório acredita que quem vai pagar a conta, se é que haverá algum pagamento, será a burguesia portuguesa?
Não podemos deixar de ser céticos quanto à proposta. Se supusermos por um instante que ela fosse cabível – algo que nos levaria a cobranças de “reparações históricas” até a era do Império Romano, ou antes -, como um país relativamente pobre como Portugal pode devolver ao Brasil todo o ouro, prata, minerais e outras tantas riquezas levadas daqui para lá? Se mal conseguem tirar toda a população portuguesa da pobreza, de onde tirar recursos para solucionar os problemas da população negra trabalhadora brasileira, que enfrenta a miséria única e exclusivamente, segundo a tese decolonial, devido à escravidão imposta pelos portugueses e nada mais?
Logo vemos que não é possível falar numa “reparação” séria.
O mais curioso do elogio a esse Portugal decolonial, porém, é o momento que atravessamos. O governo português participa ativamente de tudo o que ocorre no equivalente moderno da política colonial à política imperialista. É membro da União Europeia, bloco econômico que busca subjugar os países pobres europeus em nome dos bancos alemães e franceses; integra a OTAN, aliança militar que policia todo o mundo contra qualquer país que tente levantar a cabeça contra o julgo imperialista; e, finalmente, apoia de corpo e alma o envio de armas aos nazistas ucranianos e apoia o genocídio do povo palestino em Gaza. Mas em relação aos crimes de séculos atrás, por esses, sim, eles sentem muito.
É a confirmação clara do propósito da política decolonial, woke. Trata-se de uma forma sutil de encobrir os crimes do presente envolvendo um setor inexperiente da juventude, dotado de um idealismo humanitário, na luta contra os crimes do passado – mas não do passado recente, do passado longínquo, de outros ciclos históricos. É o que leva uma pessoa a chamuscar a estátua do Borba Gato no mesmo dia em que há um grande protesto contra o governo de Jair Bolsonaro. É o que leva alguém a estabelecer uma relação de continuidade entre o bandeirante de mais de três séculos atrás e o policial militar que hoje massacra a população negra e pobre das periferias.
Ainda mais curioso é que o maior crime imperialista em curso no momento, os bombardeios em Gaza, tem parte de sua origem na política de “reparações históricas”. Por mais que sionistas sejam historicamente judeus seculares, apoiam-se na mitologia bíblica de que, em algum momento, milênios atrás, seus antepassados teriam habitado o que hoje compreende a Palestina. Mais do que isso, são os precursores da política identitária, da ideia de que se deve “censurar o discurso de ódio” e de que criticar o caráter criminoso do Estado de “Israel” é, na realidade, um ato de antissemitismo.
É para isso que serve a política identitária, para que esqueçamos o presente e relembremos um passado fantasioso, que nunca existiu.