O retorno de Marta Suplicy ao Partido dos Trabalhadores (PT), com o objetivo explícito de concorrer às eleições municipais como candidata a vice-prefeita de uma chapa encabeçada pelo PSOL, é aquele típico acontecimento que demonstra que, para o oportunismo político, não há limites para o ridículo. A ex-prefeita de São Paulo, que abandonou o PT quando esse sofria um golpe da direita, rapidamente se tornou objeto de vários debates dentro do partido. A própria existência de tais debates já demonstra, em si, a completa desorientação política da legenda.
Há figuras que, como Valter Pomar, embora não defendam o retorno de Marta Suplicy, consideram-na uma aliada importante para eleger Guilherme Boulos como próximo prefeito de São Paulo. Não se trata, propriamente, de uma novidade: é a velha defesa da “frente amplíssima”, com tudo e com todos, no combate a um suposto “mal maior”. A política de frente ampla já se mostrou um fracasso em incontáveis eventos históricos e, inclusive, em eventos da política recente. A candidatura de Lula em 2022, que teve Geraldo Alckmin como vice e contou com o apoio de Simone Tebet, correu um sério risco de ser derrotada, uma vez que os representantes da “frente ampla” impuseram um conteúdo profundamente direitista à campanha, que deveria ser uma campanha popular, das massas.
A única diferença entre Alckmin e Marta Suplicy é que, no caso da disputa à prefeitura de São Paulo, a “frente ampla” já havia sido declarada desde o momento em que o PT decidiu apoiar Guilherme Boulos, que é um candidato bem quisto pela burguesia tucana de São Paulo.
Dentro do PT, há figuras também que se propõem a “tapar o nariz” para o passado recente de Marta Suplicy porque ela teria sido uma “grande prefeita” – e, por isso, seria um grande trunfo eleitoral. Novamente, um erro, uma vez que Marta Suplicy, conhecida como “Martaxa”, não goza de popularidade alguma. Trata-se de uma figura que só foi eleita prefeita por causa de sua filiação ao PT, que sempre teve força na capital paulista, e que sequer conseguiu ser reeleita, tendo sido derrotada em 2004 por José Serra (PSDB). Nas eleições daquele ano, Suplicy correu risco de perder já no primeiro turno, conquistando apenas 35% dos votos.
Mas o debate que há de mais grotesco no PT é aquele que se refere ao golpe de 2016. Essa debate escatológico se encontra, por exemplo, no artigo Sobre o retorno de Marta ao PT, publicado pela corrente interna O Trabalho. O texto argumenta que:
“Marta Suplicy abandonou o PT em 2015, quando nossos dirigentes, instâncias e militantes eram atacados de forma orquestrada pela classe dominante sob a acusação de corrupção […] Marta embarcou nessa canoa, sem pestanejar fez coro com todos os ataques e apostou no fim do partido, no fim de Lula, no fim das conquistas que até então a classe, como todas as dificuldades, havia alcançado. Ao se desfiliar do PT, Marta afirmou: ‘É de conhecimento público que o Partido dos Trabalhadores tem sido o protagonista de um dos maiores escândalos de corrupção que a nação brasileira já experimentou, sendo certo que mesmo após a condenação de altos dirigentes, sobrevieram novos episódios a envolver a sua direção nacional’ […] Marta votou a favor da PEC do Teto de Gastos, maior golpe desferido contra a população brasileira [sic] que limitou durante anos os orçamentos de saúde, educação e todos os serviços públicos […] Marta votou a favor da Reforma Trabalhista, instrumento que desregulamentou as leis e garantias, conquistas de 70 anos da classe trabalhadora.”
Tudo isso relatado por O Trabalho já deveria ser mais que suficiente para adotar uma posição em relação a Marta Suplicy. A corrente petista, no entanto, sente a necessidade de ir além e fazer uma senhora concessão à futura candidata a vice-prefeito:
“Não somos adeptos do ‘pecado mortal’. Todo mundo pode errar e reconhecer seus erros. Mas a refiliação de Marta Suplicy, sem qualquer balanço de seu passado pregresso [sic] é um elemento de desmoralização não dela, mas do partido.”
Para O Trabalho, portanto, o grande problema do retorno de Marta Suplicy não seria o seu passado, mas o fato de ela não ter feito um balanço de sua atuação! Ora, alguém duvida mesmo que um político burguês como Marta Suplicy, que se mostrou um verdadeiro rato abandonando o navio às vésperas de afundar, seria capaz de mentir e fazer uma “autocrítica” para viabilizar a sua candidatura? É ridículo condicionar um “perdão” a Suplicy a uma sessão de autoflagelamento da ex-prefeita.
Tudo fica ainda pior quando, ao comentar o artigo, um dirigente da corrente petista, segundo informou Valter Pomar, teria dito que a volta de Suplicy, “na prática é uma autocrítica”. Não podemos tirar sua razão. Se é para ser picareta, melhor ser picareta por completo! Se o guichê de O Trabalho já indicou a Marta Suplicy onde ela pode emitir um passaporte para transitar no PT, melhor então carimbá-lo logo para que a vice-prefeita não perca tempo!
O apoio de Marta Suplicy ao golpe de 2016 não é, obviamente, um problema de fazer ou não autocrítica, nem tampouco de “pecado mortal”. Dizer que a ex-prefeita deveria “fazer um balanço de seu passado” é o mesmo que dizer que Marta Suplicy cometeu um “erro”, um “equívoco” ao apoiar o golpe. Seria um problema de posição política, que poderia ser facilmente reajustada após uma discussão.
Não é disso que se trata. Suplicy não apoiou o golpe por uma confusão política, porque “achou” que estava fazendo o melhor para o País. O golpe de Estado foi uma operação política que aconteceu às claras. Qualquer pessoa envolvida nele sabia exatamente o que estava acontecendo. É tudo tão grotesco que até o filho de Marta Suplicy, o cantor Supla, falou que sua mãe era “golpista”. E o apoio ao golpe, por sua vez, não se tratou apenas de atacar publicamente o PT. Suplicy, ao sair do partido, se filiou ao MDB, o mesmo partido de Michel Temer, o homem que assumiu a presidência da República imediatamente após o golpe.
Chama muito a atenção o fato de que O Trabalho precise listar tantos ataques de Suplicy ao povo brasileiro e ainda tenha eleito a PEC do Teto como “o maior golpe”. Isso mostra a completa incapacidade de a corrente petista assimilar o que aconteceu há quase oito anos.
O “maior golpe” contra os brasileiros foi, obviamente, o golpe de Estado. Foi uma operação coordenada pelo Departamento de Estado norte-americano, com o apoio total e cartelizado da grande imprensa e de todas as instituições do Estado. Foi uma grande conspiração dos poderosos contra o povo brasileiro – conspiração essa que seria responsável por todos os ataques que viriam depois. A incontestável participação de Marta Suplicy no golpe deve ser vista, portanto, como um caso de corrupção política. Trata-se de uma figura que, diante da ofensiva dos poderosos contra o seu partido, decidiu explicitamente colaborar com eles.
Não há palavras de “balanço” que alterem a posição de Marta Suplicy. Seu posicionamento, ao apoiar o golpe, foi, finalmente, um posicionamento de classe: a ex-prefeita mostrou que expressa os interesses dos inimigos daqueles que o PT diz defender. Seu apoio ao golpe não foi um problema de “estratégia”, mas uma prova de que Suplicy representa a classe dominante, mesmo nos momentos em que se tornou evidente o que os capitalistas planejavam para o País.
Não deve sequer haver espaço para um debate sobre o que Marta Suplicy defende hoje ou como a ex-prefeita vê o processo que levou à derrubada do governo do PT em 2016. Aceitá-la de volta ao PT é uma demonstração de total falta de escrúpulos políticos. Uma falta de escrúpulos, por sua vez, que não deriva de nenhum “pragmatismo”, no sentido de permitir um acordo pontual para o avanço de um determinado objetivo. O partido inteiro está sendo desmoralizado a troco de nada que não seja, de acordo com as mais altas expectativas, uma dúzia de cargos públicos para alguns poucos dirigentes.