Diante da guerra entre um país oprimido, que vive da venda de seus recursos naturais, e um condomínio formado pelos países mais ricos, poderosos e bem armados do mundo, não há como alguém assumir uma postura de “neutralidade”. Ou se defende o interesse dos grandes monopólios internacionais em manter a sua ditadura sobre os países oprimidos, ou se defende a ação revolucionária do país oprimido que procura minar a autoridade de seus opressores.
No caso da luta da Rússia contra a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), há quem tenha assumido a posição folclórica de, dizendo-se “de esquerda”, apoiar o condomínio imperialista. Ainda que grotesco, trata-se de um fenômeno comum na política internacional: na medida em que a polarização aumenta, os setores supostamente esquerdistas capitulam diante da pressão da burguesia e adotam o seu programa político. Capitulam diante da imprensa capitalista, que faz campanha dia e noite contra os russos, capitulam diante de seus familiares, que reproduzem a campanha da imprensa contra os russos, e capitulam diante do Estado, que censura e reprime quem demonstrar apoio à operação militar na Ucrânia.
Não há como exigir honestidade de quem não tem a ombridade de manter-se fiel aos princípios que diz defender. Por isso, é igualmente comum que os mesmos esquerdistas pró-OTAN elaborem as mais extravagantes teses para justificar a sua política reacionaria. É o caso de um tal Ashley Smith, que se diz um “ativista socialista” da cidade norte-americana de Burlington. Em seu artigo Imperialismo e anti-imperialismo hoje, publicado no portal Tempest, o autor nos brinda com uma tese bastante peculiar sobre o funcionamento das sociedades. Diz ele:
“O capitalismo produz o imperialismo – a competição entre as grandes potências e as suas corporações pela divisão e redistribuição do mercado mundial. Esta competição gera uma hierarquia dinâmica de Estados, com os mais poderosos no topo, as potências médias ou subimperiais abaixo deles e as nações oprimidas na base.”
Já no começo, Smith mostra não saber do que está falando. Há, de fato, uma relação entre o capitalismo e o imperialismo. Mas dizer que o capitalismo “produz” o imperialismo é, no mínimo, impreciso. O imperialismo não é uma mera característica do capitalismo. É, conforme o próprio título do livro de Vladimir Lênin, cânone sobre o assunto, indica, a “fase superior do capitalismo”. Isto é, o imperialismo é o capitalismo, não parte dele. É o capitalismo dos dias de hoje. O capitalismo de livre concorrência (fase anterior) se converteu em capitalismo imperialista. Essa conclusão, demonstrada com uma quantidade impressionante de dados e estatísticas, é apresentada pelo próprio Lênin em sua obra:
“As principais fases da história dos monopólios são as seguintes: (1) 1860-70, a fase mais elevada, o ápice do desenvolvimento da livre concorrência, quando o monopólio está em uma fase embrionária, quase imperceptível; (2) após a crise de 1873, um longo período de desenvolvimento de cartéis; mas eles ainda são a exceção, ainda não são duráveis. Eles ainda são um fenômeno transitório; (3) o boom do final do século XIX e a crise de 1900-03, quando os cartéis se tornam um dos alicerces de toda a vida econômica. O capitalismo foi transformado em imperialismo [grifo nosso].”
O erro cometido logo no início do artigo levará a uma série de consequências absurdas. Uma delas é a ideia que o autor apresenta, no mesmo trecho, de “hierarquia dinâmica de Estados”. Essa ideia seria apresentada de maneira mais clara no parágrafo seguinte:
“Nenhuma hierarquia é permanente. A lei do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo, os seus altos e baixos, a sua competição corporativa, o seu conflito interestatal e as suas revoltas dos explorados e oprimidos desestabilizam e reestruturam o sistema estatal.”
O conceito de “hierarquia dinâmica” serve, portanto, para o autor entrar em total contradição com uma das principais conclusões da teoria do imperialismo. Segundo ele diz, a ordem mundial seria completamente fluida, de modo que um país que hoje é imperialista, pode amanhã se tornar uma “potência média”; uma “nação oprimida de base” hoje, pode amanhã se tornar uma “potência média”; e uma “potência média” hoje, pode amanhã se tornar uma “potência imperialista”. É curioso que Smith é tão deslumbrado com a propaganda que vê na imprensa de seu país, segundo a qual os Estados Unidos seriam a nação mais democrática do mundo, que ele acredita que, em um futuro próximo, teremos o presidente do Laos sentado à mesa em uma reunião do G7!
O autor chega a essa conclusão absurda justamente porque desconhece o que de fato seja o fenômeno do imperialismo. Quando o capitalismo se converte em imperialismo, ele se transforma, inevitavelmente, em um sistema inflexível. O imperialismo, conforme explicou Lênin, é o abandono de um sistema de livre concorrência para um sistema monopolista. É quando os capitalistas se fundem em grandes cartéis e esses cartéis, por seu turno, tomam o controle dos Estados e os utilizam para estabelecer uma dominação mundial. Se a formação dos monopólios visa controlar a economia e sufocar a livre concorrência, é óbvio que os primeiros países a conseguirem chegar em um alto grau de desenvolvimento iriam, inevitavelmente, agir para impedir que outros países se desenvolvessem ao ponto de fazer parte da ordem imperialista.
A tal hierarquia apresentada por Smith não existe. O que existe são os países imperialistas – isto é, aqueles que efetivamente controlam a economia mundial – e os países atrasados – e, portanto, oprimidos. As diferenças econômicas entre os países oprimidos, neste sentido, é uma questão secundária. Ainda que um país como a Birmânia, por exemplo, sofra uma influência econômica e política da sua vizinha China, é o imperialismo quem cumpre o papel de sufocar a economia birmanesa e, portanto, de oprimi-la politicamente.
Basta desligar por alguns minutos a CNN e sair do próprio quarto para Smith compreender isso. Desde o início do século XX, apenas um punhado de países eram países imperialistas. Isto é, países que passaram por reformas burguesas profundas e chegaram a um determinado nível de desenvolvimento que lhe permitiu assumir uma parte na divisão da ordem mundial. São eles, fundamentalmente, os Estados Unidos, o Reino Unido, a Alemanha, a França, a Itália e o Japão. Além deles, alguns outros países chegaram à fase imperialista, mas são países com uma menor participação na partilha do mundo, ocupando um papel de sócio dos grandes países imperialistas. É o caso de países como Espanha e Portugal.
Mais de cem anos depois da publicação da obra de Lênin, nenhum outro país emergiu como potência imperialista. Basta ver que os países mais importantes entre os países atrasados são os integrantes do BRICS, sendo que, ali, não há um único país imperialista. China, Rússia e Brasil, por exemplo, são países muito atrasados, que continuam muito distantes de um desenvolvimento capitalista completo, e que também não fazem parte do sistema de dominação mundial. Portanto, também não têm como fazer parte da partilha mundial.
Os países imperialistas controlam a OTAN, um exército poderoso, com bases militares em todo o mundo e que está em expansão. Um exército tão poderoso que vem corrompendo governos para estabelecer bases em seus países e que, na primeira e única vez em que foi confrontado, mobilizou forças do mundo inteiro para protestar. Onde Rússia, China, Brasil ou Índia têm um exército dessa magnitude?
Os países imperialistas controlam a Organização das Nações Unidas (ONU). Mesmo com, literalmente, todos os países clamando pelo cessar-fogo na Faixa de Gaza, os Estados Unidos sozinho vem sendo capaz de vetar qualquer resolução neste sentido. Que país atrasado seria capaz disso? E que país atrasado teria sido capaz de corromper as forças armadas, o parlamento e a imprensa de praticamente todos os países latino-americanos no último período, em que o imperialismo organizou dezenas de golpes de Estado na região?
O imperialismo é uma ditadura brutal dos países desenvolvidos contra os países atrasados. Não é mero fenômeno econômico. Não admite concorrência. É um sistema de força montado para garantir os interesses dos países que “chegaram primeiro” na fila. Se vivesse em um país como o Brasil, Smith saberia, por exemplo, que não é possível ter uma montadora de automóveis nacionais. Que nem mesmo é possível explorar o seu próprio petróleo. Os Estados Unidos e os seus amigos imperialistas simplesmente não permitem.
A tese sem pé nem cabeça tem um propósito claro: orientar os seus leitores a não tomarem partido da Rússia na guerra contra a OTAN. Afinal, o artigo dirá que Rússia e China são países “imperialistas” e que o Brasil seria uma “potência subimperial”. Faltou apenas demonstrar quando que a Odebrecht corrompeu o parlamento boliviano inteiro para derrubar o governo e submeter a Bolívia aos interesses exclusivos da empreiteira brasileira!
O próprio autor, no entanto, entra em contradição quando elabora a sua tese da “multipolaridade” e da “unipolaridade” da ordem mundial. Segundo ele, o mundo teria sido “multipolar” durante a Segunda Guerra Mundial, quando vários países imperialistas se enfrentaram, “bipolar” quando os Estados Unidos e o “Império soviético” (!) se enfrentaram na Guerra Fria, e “unipolar” após a queda do Muro de Berlim. A tese, ainda que apresente a ideia grotesca de um Estado Operário muito atrasado economicamente, que perdeu mais de 20 milhões de pessoas na Segunda Guerra Mundial, seja imperialista, também mostra que o sentido geral do imperialismo não é aumentar o número de sócios, mas justamente diminuí-lo.
Até o Início da Primeira Guerra Mundial, França, Reino Unido e, até certo ponto, a Alemanha, ainda disputavam pela posição de país mais importante do condomínio imperialista. No entanto, com a Segunda Guerra Mundial, o que aconteceu foi que os Estados Unidos se consolidou como síndico desse condomínio. E a que se deve esse processo? Ao fato de que os Estados Unidos praticamente transformaram as outras potências imperialistas em uma espécie de protetorado seu. O Estado britânico, por exemplo, é hoje praticamente controlado pelo Departamento de Estado norte-americano. Recentemente, vieram à tona documentos que sugeriam que os sistemas de inteligência norte-americanos estiveram por detrás da escolha de Boris Johnson como primeiro-ministro britânico.
Os próprios eventos trazidos por Smith, portanto, corroboram que não há uma “hierarquia dinâmica”, mas sim uma ditadura que tende a se concentrar cada vez mais em torno de pouquíssimos países.
O autor, então, vai apresentar a tese de que estaríamos voltando para o período da “multipolaridade”. Isto é, que, após os Estados Unidos vencer a corrida para se tornar o principal país imperialista do mundo, agora novamente, sabe-se lá como, outros países estariam disputando a dominação mundial. França, Alemanha, Portugal e Reino Unido dominavam praticamente toda a África, e, ainda assim, hoje já não conseguem fazer frente aos Estados Unidos, restando aliar-se a ele. Por que Rússia e China, que não têm uma única colônia no mundo, que não são capazes sequer de estabelecer uma imprensa que concorra com a imprensa imperialista, teriam a mínima condição de travar uma luta para alcançar o cargo de síndico do condomínio imperialista? Não faz o menor sentido.
Essa ideia, no entanto, parte de um fato: países como Rússia, China e Irã estão conseguindo vitórias militares e até mesmo políticas importantes contra os Estados Unidos e a União Europeia. A Rússia vem impondo uma derrota à Ucrânia e vem também resistindo às sanções econômicas. Mas isso nada tem a ver com a ideia de um imperialismo russo. A força da Rússia não vem, por exemplo, de milhares de soldados recrutados de países que coloniza. Seus recursos não vêm de países que explora economicamente. Seu apoio internacional não vem da chantagem, da corrupção e da atividade clandestina de seu serviço secreto.
A força da Rússia vem da fragilidade do imperialismo. Vem do fato de que a ditadura imperialista está ruindo, como é inevitável. O próprio processo pelo qual o Reino Unido passou perante os Estados Unidos é uma comprovação disso: como o imperialismo é um sistema parasitário e decadente, os países imperialistas todos tiveram de ceder parte de sua influência para os norte-americanos para evitar serem engolidos pela rebelião contra a ordem mundial. Na medida em que os Estados Unidos fracassa militarmente, sendo incapaz de vencer uma guerra com países muito atrasados, como o Afeganistão e o Iraque, expõe ao mundo a sua fraqueza e, assim, estimula todos os países oprimidos a se enfrentarem com os seus opressores. É desse movimento que vem a força da Rússia, da China e do Irã. Não se trata de uma disputa pela direção da ditadura imperialista mundial, se trata de um amplo movimento de libertação dessa ditadura.
Para não ter de chegar a essa conclusão, Smith, então, inventa outra tese sem pé nem cabeça. Diz ele:
“Os Estados Unidos continuam a ser o Estado mais poderoso do mundo, possuindo a maior economia, o dólar como moeda de reserva mundial, com as forças armadas mais poderosas, a maior rede de alianças e, portanto, o maior poder geopolítico. Mas enfrenta rivais imperiais na China e na Rússia e rivais subimperiais em todas as regiões do globo. Estes antagonismos não conduziram a blocos geopolíticos e econômicos coerentes. A globalização uniu firmemente a maioria das economias do mundo, impedindo o regresso de blocos como os da Guerra Fria.
Assim, os dois maiores rivais, os Estados Unidos e a China, são também dois dos mais integrados do mundo. Pense no iPhone da Apple – concebido na Califórnia, fabricado em fábricas de propriedade de Taiwan na China e exportado para fornecedores nos Estados Unidos e em todo o mundo. As novas potências subimperiais não são leais nem à China nem aos Estados Unidos, mas forjam pactos de forma oportunista com uma ou outra potência na prossecução dos seus próprios interesses capitalistas. Por exemplo, enquanto a Índia fecha acordos com a China na aliança BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul) contra os Estados Unidos, participa na aliança QUAD de Washington (Estados Unidos, Austrália, Índia, Japão) contra a China”.
É difícil dizer de onde que Smith tirou essa ideia. Afinal, nas emissoras de televisão que assiste, fala-se dia e noite do “Eixo do mal”, das “autocracias” etc. Isto é, a própria imprensa imperialista reconhece que existem países que desafiam os seus interesses e que esses países atuam cada vez mais em conjunto. É óbvio que há contradições entre esses países – afinal, a unidade não é ideológica, não vem da impressão de um modelo teórico. Nem Vladimir Putin, nem o Aiatolá Ali Khamenei, nem Xi Jinping estão evoluindo rumo a um enfrentamento porque leram Lênin, mas sim porque foram empurrados para isso. A ideia é tão fora da realidade que o próprio autor se contradiz:
“Os Estados Unidos e os seus aliados da NATO impuseram as sanções mais severas da história à Rússia e pressionaram a Europa Ocidental a abandonar o fornecimento de energia russo e, em vez disso, a depender das exportações de gás natural dos EUA. A Rússia, em reação, tornou-se cada vez mais dependente da China para comércio e tecnologia, bem como da Coreia do Norte e do Irã para mísseis, drones e outro equipamento militar”.
Como a Rússia se tornou dependente da Coreia do Norte, se é justamente a Rússia quem está sendo acusada por Smith de ser uma “potência imperialista”? Por acaso, agora, com a guerra da Ucrânia, Kim Jon-Un está emergindo como o grande líder imperialista, abocanhando a Rússia? É ridículo. O que Smith atesta nesse trecho é simples: o enfrentamento com o imperialismo está criando uma rede de solidariedade entre os países oprimidos.
A ideia de que não haveria blocos serve somente para apontar que não estaria em marcha um movimento de características revolucionárias, que tivesse um sentido coerente. Negar que haja blocos é, por sua vez, negar que sequer existam antagonismos de classe entre os países, pois se os países agem “oportunisticamente”, é porque não há forças sociais que imperam na política internacional, mas apenas conveniências. Chegamos, portanto, à conclusão de que não existe o imperialismo, uma vez que a pressão do imperialismo e a rejeição a essa pressão não interferem na relação entre os países.
Seguindo o mesmo raciocínio, Smith vai dizer que:
“Não existe um verdadeiro ‘eixo de resistência’. Todos estes Estados estão a tentar impedir que a solidariedade popular com a Palestina caia em oposição ao seu próprio governo despótico. E quando confrontados com qualquer resistência interna, todos, do Egito ao Irã, reprimiram-na com força bruta. Todos são regimes capitalistas contra-revolucionários”.
Independentemente da vontade de Smith, o Eixo da Resistência existe. E ele está comprovado a partir do momento em que os próprios integrantes afirmam que ele existe. Mas o que é mais importante que isso é que a própria imprensa israelense reconhece que “Israel” está sendo atacado por “sete frentes”. Há algo mais revolucionário que encurralar a entidade sionista que hoje é responsável pelo mais horrendo genocídio em curso?
Mas não é só isso. O argumento de Smith é também mentiroso. Primeiro, ele menciona dois países que estão em posição diametralmente oposta: Irã, cujo regime é resultado de uma grande revolução contra a dominação imperialista, e Egito, cujo regime é uma ditadura militar implantada pelo imperialismo. Comparar um e outro é um exercício de má-fé. Em segundo lugar, enquanto o Egito tem mais de 60 mil presos políticos, o governo iraniano é apoiado pela maioria da população, de modo que 99% do que se fala sobre repressão no país não passa de falsificação e calúnia da imprensa. Por fim, e não menos importante: se o Irã apoia o povo palestino para amenizar uma suposta crise interna, por que Arábia Saudita e Jordânia, que são ditaduras brutais e muito mais contestadas pela população, não apoiam os palestinos efetivamente?
E não é apenas o Irã que Smith critica quando diz que o Eixo da Resistência é uma farsa. O autor que não consegue enxergar o mundo além da televisão de seu quarto acha que contribui mais para a revolução mundial escrevendo seus textos que contribui o Hesbolá, que praticamente varreu os colonos do norte de “Israel”, causando uma crise tão grande que essa região pode acabar se declarando independente do governo central sionista. Mais de cem mil colonos já foram obrigados a sair de suas casas, em meio a um conflito que tem assustado a própria imprensa israelense.
O caso do Eixo da Resistência fornece às teses de Smith um caráter ainda mais problemático. Afinal, não estamos mais diante de um “ativista socialista” que se nega a defender o governo de um país oprimido contra a OTAN. Estamos diante de uma figura que está em uma campanha de má-fé contra as forças políticas que estão lutando contra o genocídio na Faixa de Gaza. Isso mostra o grau de comprometimento de Smith com a defesa da política criminosa do país onde mora. Smith está com o regime norte-americano para o que der e vier. Já pode sair pelo bairro balançando uma bandeirinha norte-americana. Avante, patriota!