Resenha Livro – “Morte e vida severina e outros poemas para vozes” – João Cabral de Melo Neto – Ed. Nova Fronteira
“E se somos Severinos
Iguais em tudo na vida,
Morremos de morte igual,
Mesma morte severina:
Que é a morte de que se morre
De velhice antes dos trinta,
De emboscada antes dos vinte,
De fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
É que a morte severina
ataca em qualquer idade
e até gente não nascida.)”.
O primeiro livro de poesias publicado pelo escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto data de 1942, quando o artista acabara de se transferir do Nordeste ao Rio de Janeiro. Na cidade, que era então o centro político e cultural do país, entrou em contato com um círculo intelectual do qual participavam Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes e Carlos Drummond de Andrade, este último considerado por Cabral de Melo como o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Consta ter sido convencido acerca de sua vocação de poeta após ter lido “Alguma Poesia” (1930), que reúne os mais conhecidos versos do poeta de Itabira.
Contudo, certamente o trabalho mais conhecido de Cabral de Melo Neto foi “Morte e Vida Severina” (1954/1955) escrito treze anos depois do início da sua trajetória literária.
O poema foi elaborado com a finalidade de encenação, mas por razões financeiras, sua exibição no teatro se deu apenas no ano de 1966, numa apresentação no TUCA onde se situa a PUC/SP: era um importante centro político-cultural, que agrupava o movimento estudantil para realização de atividades como exibições de filmes, debates, assembleias, encenações teatrais e apresentações musicais. O teatro se notabilizaria com os eventos de 22.09.1977 quando uma assembleia de cerca de dois mil estudantes, convocada para a reconstrução da UNE, foi dissolvida por uma ação policial violenta, envolvendo três mil soldados, ensejando pela repressão uma nova onda de protestos estudantis que seria um dos eixos do movimento de redemocratização do Brasil.
Certamente, “Morte e Vida Severina” tinha um claro conteúdo político, de denúncia da miséria social nordestina através do personagem Severino, representativo do retirante que abandona o Sertão, passa pelo agreste e chega ao Recife, fugindo da morte em direção ao mar tal qual as águas do Rio Capiberibe, que segue o mesmo itinerário no poema “O Rio”.
Contudo, não é propriamente a denúncia social ou a crítica política do latifúndio e da miséria da população camponesa o que dá o tom da poesia cabralina.
O que nela há de comum é o elemento telúrico, a descrição da terra natal através da memória da infância. A história da terra tratada nos poemas envolve inclusive a memória do grande líder da Confederação do Equador, Frei Caneca, novamente denotando a forte relação do poeta com as suas raízes pernambucanas, como exposto no poema “Auto do Frade” (1984).
E, além desse elemento telúrico, outro aspecto representativo da poesia de Melo Neto é a morte: no caso do seu mais conhecido poema, “a morte em vida”, e “a vida em morte”: o retirante que morre aos poucos, já envelhecido aos trinta anos de idade (“morte em vida”); e a cova para onde o retirante inexoravelmente marcha, e que corresponde à uma parte da terra que em vida queria ver dividida (“vida em morte”):
“- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor que tiraste em vida.
– É de bom tamanho, nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe neste latifúndio.
– Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.”
Esses dois elementos essenciais da poesia cabralina, a morte e a descrição da sua terra natal, remontam ambas à origem do escritor.
Nascido no Recife em 09 de janeiro de 1920, passou a infância no engenho do Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, interior de Pernambuco, às margens do Rio Capiberibe, que é reiteradamente mencionado nos versos. Estudou num colégio religioso, que lhe incutiu o pavor da morte.
Válido pontuar que a maior parte dos poemas foram escritor quando o escritor residia fora do país, exercendo a função de diplomata em Espanha, Paraguai e Senegal. Foi através das suas memórias de menino que elaborou poesias carregadas de imagens, plenamente adaptáveis ao teatro e ao cinema.
A mesma arte telúrica rememorativa da infância de José Lins do Rego na sua descrição da decadência dos velhos engenhos de açúcar, e sua substituição, através da reestruturação produtiva do capitalismo tardio, em Usinas que desertificam as vilas, expulsam seus moradores da cidade e tornam todo o seu arredor, até o alcançar da vista, em plantações de cana.
Cite-se o mencionado poema “O Rio” de Cabral de Melo Neto:
“A usina possui sempre
uma moenda de nome inglês;
o engenho, só a terra
conhecida como massapê”.
No que toca à morte, trata-se do fio condutor de pelo menos três dos seus poemas mais conhecidos: “Morte e Vida Severina”; “Auto do Frade”; e “O Rio”.
Em Morte e Vida Severina, o retirante se depara com diferentes espécies de morte.
No seu caminho do sertão ao mar, se depara com homens carregando um defunto numa rede. Tratava-se da “morte matada”: o defunto foi assassinado à bala por conta de disputas de terra.
Depois, ao chegar em Recife e próximo ao cemitério, ao escutar o diálogo de dois coveiros, se depara com a “morte morrida”: são as mortes em alta escala dos retirantes, que morrem dia a dia, aos poucos, chegando à velhice antes dos trinta. Trata-se de uma morte não dissociada das desigualdades sociais: o coveiro prefere trabalhar no cemitério dos ricos onde o volume de trabalho é menor e há a possibilidade de se ganhar gorjetas.
A vida segue através de um fio condutor que a leva até a morte.
Este trajeto de repete no poema “O Rio” em que o Capiberibe parte do sertão para desaguar e se diluir no infinito do mar. Através dessa viagem, o poeta vai traçando as vilas, o povo e os sertanejos que se servem dos trajetos dos rios para conduzi-los até o Recife em fuga da seca. Neste itinerário, também se depara com a morte e miséria dos retirantes.
O mesmo fio desde a vida até a morte se revela por fim no poema épico “Auto do Frade” (1984). Nele se descreve o cortejo popular que acompanha o líder da revolta separatista conhecida como “Confederação do Equador”, desde a prisão até a praça pública onde será executado.
Ainda que todos os caminhos levem à morte, seja a do rio em direção ao mar, seja do retirante em direção à cidade, seja o mártir em direção à forca, ainda há um balanço positivo.
Ao final de “Morte Vida Severina”, quando Severino testemunha o nascimento de uma criança filha da miséria, o leitor é levado à conclusão de que essa vida miserável do retirante, essa “vida severina”, ainda assim é digna de ser vivida:
“E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma
teimosamente, se fabrica,
vê-la bbrotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;