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Coluna

Mitos em torno do ‘Milagre Econômico’ da ditadura militar

"O caldo que preparou o Golpe Militar de 1964 foi apurado por uma grave crise econômica, que se arrastava desde o início daquela década"

O caldo que preparou o Golpe Militar de 1964 foi apurado por uma grave crise econômica, que se arrastava desde o início daquela década. A crise política que antecedeu ao golpe, se originava em um coquetel bastante indigesto: queda dos investimentos, redução das taxas de crescimento do PIB, elevação da inflação e do déficit público. A política econômica adotada pelo Plano de Metas, no governo de Juscelino Kubitschek (JK), entre 1956 e 1960, conduziu diretamente a uma situação de crise, que se aprofundou a partir de 1960. Durante o Plano de Metas o Estado fez significativos investimentos em infraestrutura, principalmente nos setores de transporte rodoviário e energia elétrica. Ao mesmo tempo, adotou políticas de estímulo à produção nas indústrias de base, como siderurgia, cimento, material elétrico etc.

A discussão sobre o período de governo de JK é longa, e implica na análise de uma série de variáveis. Um dos principais problemas apontados em relação ao período, se relaciona à forma como o Plano de Metas foi financiado. Em decorrência da baixa capacidade de arrecadação do governo à época, especialmente para financiar grandes projetos de investimentos em infraestrutura, o executivo teve que utilizar o poder de emissão de moeda, fator que contribui para elevar os níveis inflacionários, dependendo do mix de política econômica utilizado. De fato, a inflação teve trajetória ascendente no período: medida pelo deflator implícito do Produto Interno Bruto (PIB), que tinha sido de 11,8% em 1955, foi de 21% em 1956 e, no último ano de mandato, em 1960, chegou a 43%.

O golpe de 1964 obviamente não foi um ponto fora da curva. O número – e a importância – de acontecimentos e processos políticos nos meses que antecederam o golpe foi vertiginoso. Em janeiro de 1962, por exemplo, foi criada a Eletrobrás, luta que vinha sendo travada há décadas (há uma referência na Carta Testamento de Getúlio, datada de 1954, à empresa: “A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre”). Neste mesmo mês Cuba é expulsa da Organização dos Estados Americanos (OEA), porque o governo revolucionário recém-empossado não aceitava ser uma estrela na bandeira dos Estados Unidos. Essa retaliação era uma escalada das tensões entre o governo mais intervencionista do mundo e um pequeno país do Caribe que resolveu obter sua independência, independentemente do preço a ser pago. No ano anterior, Fidel Castro, em resposta à Invasão da Baía dos Porcos, havia declarado o caráter socialista que a revolução cubana tomaria a partir daquela data. Ato contínuo, em 03.02.1962 o governo dos EUA instaura o embargo econômico, comercial e financeiro contra Cuba, que permanece até os dias de hoje, 62 anos depois. E assim seguia a década, com milhares de acontecimentos históricos marcantes.

Como todo processo político complexo, o desenrolar histórico real é uma coisa, e outra é a versão, a narrativa, sobre esse mesmo processo. Uma tentativa clara nos anos golpistas recentes, tanto por parte da extrema direita, quanto da direita neoliberal, é a de “revisão” da história da ditadura militar. Em relação ao “milagre econômico” realizado pela ditadura militar, há também essa tentativa. Por isso, vale analisar um pouco essa questão dos mitos criados em torno do milagre. Nem foi uma dádiva que caiu do céu, nem uma graça que se espraiou de forma homogênea sobre todas as almas. O chamado “milagre econômico brasileiro”, período de expansão da economia na ditadura militar e hoje evocado pelos entusiastas do regime, beneficiou-se de condições criadas nos anos anteriores. Em economia não existe milagre, toda ação desenvolvida, se assenta sobre as condições estabelecidas anteriormente. Vamos aos mitos:

1º mito: um milagre, obra de “santos” de verde oliva – o primeiro mito é a própria designação do processo ocorrido, que traz um evidente caráter propagandístico. Não teve nada de milagroso no processo. O crescimento elevado da economia no período – que é basicamente o que é apontado como um “milagre” – foi fruto de políticas desenvolvimentistas concretas, somadas, inclusive, a um pesado arrocho salarial. Os trabalhadores, especialmente os mais pobres, pagaram o preço do crescimento sem distribuição de renda;

2º mito: o milagre decorreu da desregulamentação e das políticas liberais – o crescimento econômico do período da ditadura teve de tudo, menos predominância de política liberal. A economia deslanchou em certos períodos, assentada sobre pesado investimento estatal e princípios keynesianos de gestão, isto é, elevada intervenção estatal, principalmente para garantir a demanda, que é um dos grandes nós de funcionamento do capitalismo. Como se sabe, toda grande crise capitalista é de sobreprodução, ou seja, excesso de mercadorias em relação à capacidade de consumo da sociedade. No período ocorreu elevado investimento estatal em estradas, hidrelétricas e petroquímicas. A taxa de investimento público em relação ao PIB saiu de menos de 15% em 1964 para 23,3% em 1975;

3º mito: os investimentos foram realizados sem endividamento – essa é uma grande mistificação. A aposta da ditadura foi na realização de grandes obras, como a Ponte Rio-Niterói, a mega usina de Itaipu, usinas nucleares de Angra, polos petroquímicos e Rodovia Transamazônica. Esta obra, inclusive, inconclusa até hoje. Esse “milagre” da multiplicação das obras foi realizado com base no dinheiro vindo de fora. Havia um excesso de capitais ao nível internacional, em função da crise internacional, e o sistema financeiro disponibilizava recursos a taxas módicas de juros, em torno de 6%. Porém, com uma cláusula essencial: eram juros flutuantes e não fixos. Quando o cipó de aroeira voltou, ou seja, quando as taxas internacionais de juros explodiram, o lombo do país doeu muito. No período das vacas gordas, o farto capital internacional chegava ao país tanto pelas empresas multinacionais, que eram tratadas no Brasil como representantes de deus na terra, quanto por empréstimos feitos em bancos internacionais;

4º mito: no tempo da ditadura quase não havia estatais – mito absoluto. A ideologia neoliberal iria se instalar no mundo cerca de 15 anos depois do golpe de 1964. Na realidade, a ditadura foi bastante estatista. Durante os seus governos, criou 274 empresas estatais, fundamentais para a regulação da política macroeconômica e para gerar produção e riqueza nos vários setores da economia. Foram criadas superempresas como Nuclebrás (energia nuclear), Infraero (aeroportos) e Telebras (telefonia). Essas geraram muitos empregos, forneciam serviços com preços coordenados centralmente e geravam postos de trabalho, normalmente mais bem remunerados do que no setor privado. Esses elementos certamente incrementaram o mercado consumidor interno;

5º mito: os militares entregaram uma economia melhor, do que aquela que herdaram – ao contrário do que a propaganda da direita afirma, os militares deixaram uma herança maldita para os que assumiram após a chamada redemocratização do país. Em boa medida, os militares tiveram que negociar uma transição política justamente em decorrência do aprofundamento da crise e de sua incapacidade de resolver os problemas nacionais. Alguns problemas históricos que assolavam o país há décadas, como a imensa desigualdade social, se agravaram significativamente. Outro indicador que os militares pioraram muito foi o do endividamento do setor público. Em função da política de grandes investimentos, a ditadura endividou o governo, principalmente captando empréstimos externo, em dólares. Por conta disso, durante todo o período ditatorial, a dívida pública externa aumentou em mais de 30 vezes. Por outro lado, com inflação elevada e sindicatos controlados pela censura e pela repressão política, o arrocho salarial impôs uma dramática queda dos salários reais;

 Mito: os militares montaram uma estrutura econômica sólida – nos últimos anos, de vez em quando se escuta algum saudosista da ditadura destacar a suposta solidez das políticas econômicas adotadas pelos governos daquele regime. Este é um mito completo, baseado em uma visão parcial e superficial dos acontecimentos. Durante um certo tempo tais políticas realmente funcionaram, mas quando a crise internacional se aprofundou, o modelo adotado se revelou extremamente frágil. Um “castelo de areia” na definição de alguns analistas. Como tudo na vida, política econômica requer consistência, ou seja, ela tem que ser eficaz na maior parte do tempo, e não apenas quando as coisas estão indo bem. Por exemplo, a inflação, que foi um argumento central dos golpistas para justificar a violação constitucional que praticaram, foi controlado no início. Mas quando os militares, em fase da crise incontrolável, entregaram o poder aos civis, ela já estava em 231%. Além disso, a herança deixada pelos militares, fez com que os governos seguintes tivessem que colocar como centro da política econômica o combate a uma super inflação, que ameaçou várias vezes se tornar uma hiperinflação. Claro, a “solução” para o problema inflacionário, nos governos seguintes, continuou se baseando no aumento da exploração dos trabalhadores. A mesma fragilidade da política econômica do período ditatorial se manifestou em outras áreas, como a da dívida pública. Quando os militares assumiram, em 1964, a dívida era de 15,7% do PIB, percentual bastante normal e controlável. Quanto tiveram que passar o poder em 1984, a dívida pública correspondia a 54% do PIB. A dívida externa, no mesmo período, passou de US$ 3,4 bilhões em 1964 para mais de US$ 100 bilhões (em 1985), um impressionante crescimento de quase 30 vezes, como assinalado. Com o agravante de ser uma dívida em moeda estrangeira. Esse endividamento conduziu a economia brasileira a uma insolvência, em 1982, quando o país ficou sem dólares para honrar seus compromissos relativos à dívida, caracterizando uma espécie de “falência múltipla de órgãos” da ditadura militar;

7º mito: toda a população se beneficiou com a política do milagre – muitas pesquisas já desmontaram esse mito, mostrando que naquele período houve crescimento, mas não desenvolvimento econômico, que combina crescimento com distribuição de renda e melhoria de vida da população. Crescimento sem distribuição, é melhor do que recessão ou estagflação, sem dúvidas. Mas para a maioria do povo, o fundamental é o desenvolvimento econômico, que melhore salários, gere empregos de qualidade, e se caracterize por serviços públicos de qualidade. Mas a ditadura não foi implantada para atingir tais objetivos. No início, os governos militares conseguiram realmente controlar a inflação, mas isso foi feito às custas dos salários. As políticas de correção adotadas, fundamentais em ambientes com inflação elevada, foram achatando os salários reais.

O Salário-Mínimo (SM), que é fundamental no Brasil em função dos baixos níveis salariais, no oferece um dado bem objetivo do arrocho salarial praticado pela ditadura militar, especialmente sobre os mais pobres. O Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) desenvolve uma série histórica do valor real do Salário-Mínimo desde a sua criação, em julho de 1940. Até o golpe de 1964, a política destinada ao SM era debatida em Comissões Mistas, um fórum tripartite. Após a implementação do SM, em julho de 1940, até março de 1964, o SM teve seus reajustes estabelecidos pela Comissões Mistas do SM (ver Dieese, Nota Especial do Salário Mínimo, 2023,). Esse processo era irregular e os reajustes dependiam sempre de uma certa mobilização das lideranças dos trabalhadores. Segundo a citada nota, o poder aquisitivo do Salário Mínimo (ou seja, o SM real) obteve seus maiores valores na segunda metade da década de 1950 e nos três primeiros anos da década de 1960.

No período entre 1955 a 1962, o poder aquisitivo do SM, isto é o poder de compra, foi superior ao de julho de 1940, quando começou a vigorar. O último reajuste anterior ao golpe recuperou as perdas de 1963, ano de inflação alta, e ainda possibilitou um aumento na comparação com julho de 1940. A ditadura foi implacável com a política do salário mínimo. Ainda no primeiro ano do governo golpista, as Comissões Mistas de SM foram extintas e retiradas do texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A partir desse momento, segundo a nota do Dieese, o SM diminuiu em termos reais, de forma praticamente ininterrupta. Em 1974, dez anos de regime militar, o SM valia pouco mais da metade de seu valor original, pago em julho de 1940. A ditadura utilizou a política salarial como instrumento de controle da inflação, através do arrocho salarial, e o SM foi peça fundamental nesse processo. Foi a principal variável de ajuste nessa política.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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