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Ric Jones

Médico homeopata e obstetra. Escritor, palestrante da temática da Humanização do Nascimento no Brasil e no exterior.

Coluna

Intactos

A circuncisão e seus efeitos

Ao participar de congressos nos Estados Unidos sobre humanização do nascimento nas primeiras duas décadas deste século eu conheci um lado da cultura americana que muito me impressionou. Espremidos entre as cabines que vendiam produtos como sonares, bonecas de ensino, livros e seus autores, bijuterias e aromas de ambientação, notei a presença de ativistas que cobriam temas variados, mas sempre relacionados com o público que participava do movimento de humanização. No meio do burburinho de participantes do congresso, encontrei o movimento contra a prática disseminada da circuncisão, o “Intact America“, e sua presença logo captou minha atenção. Depois de ficar alguns instantes tentando entender do que se tratava, fui prontamente abordado por uma simpática senhora com panfletos nas mãos e um sorriso no rosto. Pela primeira vez tomei contato com pessoas que lutavam pela preservação da integridade anatômica, e posso dizer que foi uma experiência marcante.

Da minha conversa com as ativistas anticircuncisão aprendi muito sobre a importância de manter intacta esta parte do corpo em função dos inúmeros benefícios sobre a sensibilidade e o prazer sexual masculino. Foi Maimonides, judeu sefardita da idade média, o mais conhecido proponente da circuncisão. Este filósofo e estudioso da Torá viveu entre os muçulmanos da costa ocidental da África e do Egito. É dele a frase: “A lesão corporal causada a esse órgão é exatamente a desejada”, escreveu, deixando claro que observava benefício nas lesões causadas nos homens que se submetiam a este tipo de procedimento. Para ele, “Não há dúvida de que a circuncisão enfraquece o poder da excitação sexual e, às vezes, diminui o prazer natural.” Desta forma fica fácil entender que esta prática tem como finalidade última a obstrução da potencialidade prazerosa dos homens. Segundo Maimonides, assim “domesticados” teriam menos interesse no sexo e liberariam mais tempo para as coisas nobres, como o estudo da Torá. Em uma perspectiva histórica é notável o quanto esta cirurgia sempre foi realizada exatamente para atingir a sexualidade, colocando sobre ela a marca indelével da cultura, como que a afirmar que tudo que se passa ali está sob olhar cuidadoso do Grande Outro que, em última instância, determina nossa posição no mundo.

É interessante notar como a circuncisão é um não-assunto no Brasil. Se você pensar que ela está restrita aos judeus no Brasil, e a população de origem judaica no nosso país não tem mais do que 150 mil pessoas (0.06% da população brasileira), é possível perceber que não se trata de um tema de alto impacto. Já os Estados Unidos são o país que congrega a segunda maior população judaica do mundo, atrás apenas de Israel, e lá vivem mais de 5 milhões de judeus, algo próximo de 1.5% da população. Entretanto, nos Estados Unidos a prática da circuncisão se alastrou para os não judeus, tornando-se uma das cirurgias mais prevalentes no país. O Centro Nacional de Estatísticas de Saúde estima que cerca de 64% dos recém-nascidos do sexo masculino americanos são submetidos à circuncisão. No entanto, esse número varia entre grupos socioeconômicos, étnicos e geográficos. Apesar da taxa de circuncisão estar em lenta queda, estima-se que 58,3% dos recém-nascidos do sexo masculino e 80,5% dos homens com idade entre 14 e 59 anos nos Estados Unidos sejam circuncidados. Apesar do número espantoso, o Afeganistão tem uma taxa de 99.8%, e Gana 91.6% de crianças circuncidadas. Muitos argumentam a existência de benefícios na realização desta cirurgia, entre eles as questões higiênicas, a diminuição do risco de câncer, proteção potencial de infecções do trato urinário e até a transmissibilidade da AIDS. Estes dados são motivo de constante questionamento, porém mas mesmo que fossem válidos seria como dizer que câncer de mama desaparece depois de mastectomia, cáries igualmente são exterminadas ao se colocar prótese dentária ou que fumar diminui a incidência de aftas na mucosa oral. para além disso, existem questões éticas muito sérias, como a de realizar cirurgias em menores de idade, com consequências para toda a vida, como potencialidade danosa ou mesmo devastadora.

Outra aspecto da minha conversa que me impressionou foi o fato de que as ativistas com quem conversei eram todas mulheres. Elas lutavam pela integridade física de seus filhos, netos e tentavam alertar a todos os homens sobre a amputação em seus corpos sem que lhes fosse garantido o direito de escolha. Falaram comigo do pênis com detalhadas explicações anatômicas e fisiológicas, como se fosse parte do corpo delas, ou como fossem diretamente afetadas. Intrigado e curioso, perguntei a elas se, em algum momento, algum homem vítima de circuncisão, havia jogado em suas faces um cancelamento ao estilo “não é seu lugar de fala” ou “deixe esse assunto para nós, homens”. Elas sorriram por saber onde eu queria chegar. Afinal, estávamos em um imenso congresso sobre parto e eu era um dos poucos homens a ter espaço para trazer minhas propostas e ideias. Uma delas respondeu: “Os homens são nossos parceiros. São nossos filhos, maridos, amigos e netos. É com os homens que fazemos amor, e garantir seu prazer é um assunto que também nos pertence. Não, nenhum homem jamais disse para eu me calar usando este argumento”.

A luta pela integridade física dos sujeitos uniu aqueles que lutam contra a violência obstétrica – cuja intervenção paradigmática e exemplo mais clássico é o das episiotomias injustificadas – e os ativistas pela integridade peniana, que lutam pelo direito dos homens de manter seu corpo e sua sexualidade livre de invasões e amputações. Desta forma, lutar contra a violência obstétrica através das múltiplas intervenções danosas sobre o corpo das gestantes e a luta contra cirurgias mutilatórias ritualísticas sobre o corpo dos homens é um assunto que tem a ver com cada um de nós, inobstante a identidade sexual de que somos investidos.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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