O limite da liberdade de expressão é um tema do momento. Na época da ditadura, quando a censura era exercida explicitamente pelo regime militar, a esquerda toda, a começar da classe artística, clamava pelo direito de se expressar livremente. Os próprios jornais da burguesia se revoltavam contra a ação dos censores. Chico Buarque fazia grande sucesso com canções em que driblava os censores com suas metáforas. Mas esse tempo já vai longe.
Hoje, a esquerda pequeno-burguesa, que abraçou o reformismo identitário como política, está mais preocupada em defender o censor, que agora, representado pelo Poder Judiciário, age supostamente em nome do bem. As leis de proteção da honra, que se traduzem na imputação de crimes de calúnia, difamação e injúria (e o subtipo injúria racial), sobrepõem-se ao direito à livre manifestação. Parece bom, afinal, ninguém teria o direito de ofender o outro. A coisa, todavia, não é tão simples.
No caso de crime de calúnia, existe um dado objetivo (constitui crime acusar falsamente alguém de ter cometido ato delituoso), mas, nos demais (difamação e injúria), abre-se um imenso campo para a subjetividade. O crime de difamação, como o nome já diz, implica ofensa à “boa fama” da pessoa. Concretiza-se quando alguém propaga “informações falsas ou imprecisas” sobre outrem com o intuito de prejudicar sua reputação, sendo a informação necessariamente de caráter desonroso. A pena mínima para esse crime é a detenção por três meses, acrescida de uma multa. Caso o criminoso faça uso de meios que facilitem a circulação do dito difamante, sua pena será aumentada de um terço.
Foi o que ocorreu recentemente com um jornalista da velha-guarda do Estadão, tradicional jornal da burguesia paulistana, que, ao escrever um artigo de opinião considerado difamatório, foi condenado a quatro meses de detenção mais multa. A detenção foi comutada por outra multa e, ao todo, coube a ele o desembolso de quantia em torno de R$45 mil, salvo engano.
A notícia, que circulou em toda a imprensa, foi a da condenação do jornalista José Roberto Guzzo, voz presente nos veículos mais direitistas do País, e do ganho de causa da advogada Carol Proner, atualmente casada com Chico Buarque (como a própria imprensa não nos deixa esquecer), que assumiu um cargo de assessora da presidência do BNDES.
O artigo, que continua no ar, intitula-se Amigos de Lula atacam o erário com a voracidade de um cardume de piranha e tem por subtítulo a frase Entorno do petista promove assalto geral às bocas da máquina pública. Qualquer um que tenha vivido no Brasil da Operação Lava Jato já sabe que caminhos vai percorrer o articulista.
A frase de abertura é esta: “o sobrinho do presidente Lula, com todos os seus 19 anos de idade, acaba de ganhar um emprego público no governo de Sergipe; rende, com os penduricalhos somados, 7.500 reais por mês”. Em seguida (tirem as crianças da sala), isto: “a neta do falecido chefe terrorista Carlos Marighella fez melhor. Levou o cargo de presidente da Fundação Nacional de Artes, a notória Funarte – uma escolha realmente esquisita, neste momento em que o governo Lula em peso, o Supremo Tribunal Federal e toda a esquerda brasileira denunciam furiosamente o terrorismo como a maior ameaça que o País já teve pela frente. A mulher do compositor Chico Buarque também faturou uma assessoria, no BNDES; pelo que deu para entender, é alguma coisa com cara de ‘direito internacional’“ (o grifo é nosso).
Depois: “a lista vai por aí afora. Tudo bem: o assalto geral às bocas da máquina pública é uma prerrogativa de quem é declarado vencedor da eleição pelo TSE. Mas a voracidade de cardume de piranha com que os amigos de Lula vêm atacando o erário é algo nunca visto”. De resto, o texto continua na mesma toada: o suposto inchaço da máquina pública e a distribuição de cargos para os “amigos”, genericamente chamados de “cardume de piranha”.
Por certo, não seria muito difícil responder a essas baboseiras num outro artigo e vida que segue, mas Carol, diferentemente do sobrinho do presidente Lula e da neta do Marighella (igualmente citados), sendo ela própria conhecida advogada, integrante do grupo Prerrogativas, optou pela judicialização do caso. A esquerda pequeno-burguesa comemora mais um tento no jogo Lula versus Bolsonaro, que parece ser o pano de fundo da querela.
Por mais que simpatizemos com Carol e antipatizemos com Guzzo, é preciso refletir sobre quem ganha e quem perde, de fato, nessa história. Como a decisão judicial é pública, podemos aprender algo com ela, a saber, o limite da liberdade de expressão, que, na prática, é balizada em ações desse tipo.
Vale notar que, se Lula fosse processar todos os que o chamaram de “ladrão”, termo repetido à exaustão na época da Lava Jato, e se a Justiça lhe desse o merecido ganho de causa, faltaria lugar nas prisões brasileiras. Dilma Rousseff, na condição de presidenta da República, foi ofendida com palavras de baixo calão (“Vai tomar no c…”) aos brados na abertura da Copa do Mundo, em flagrante desrespeito, diante da multidão e de dirigentes de outros países, por um grupo liderado por um conhecido animador de programas de auditório da TV Globo. Mas os tempos eram outros.
Na decisão judicial, que lemos em busca de aprender os critérios de julgamento de ações desse tipo, temos o seguinte:
“O título da matéria, cujo objetivo é despertar o interesse do leitor, utiliza as palavras ‘amigos de Lula atacam o erário’, ‘voracidade de um cardume de piranha’ e ‘entorno do petista promove assalto geral às bocas da máquina pública’. (grifos nossos)
Segundo o ‘Pequeno Dicionário Houaiss da língua portuguesa’ (São Paulo: Moderna, 2015), um dos significados da palavra atacar, a primeira referência do título: ‘1. investir contra (alguém ou algo), de repente e com violência’.
Da mesma forma, assaltar indica uma ação violenta e reprovável: ‘1. ataque repentino com o uso de força e intuito de roubo (…) 2. ataque repentino e violento, físico ou emocional.’
Por fim, piranha é um peixe carnívoro, com dentes afiados, conhecido pela sua voracidade, isto é, atributo daquele que devora. Como já dito, o título, atrativo dos leitores, está relacionado ao texto, onde a querelante é mencionada de forma implícita, mas de fácil identificação.”
O contexto nos permite inferir que “atacar”, no caso, foi empregado no sentido de “atirar-se (à comida) com grande apetite”, como também afirma o Dicionário Houaiss, em sua versão completa. Informa o dicionário que esse é um uso informal brasileiro. É claro que isso não muda muita coisa, apenas explica melhor a metáfora, se é que isso se faz necessário.
Em seguida, a decisão conclui:
“Portanto, ela é uma das pessoas que, de acordo com o querelado, atacou [sic] o erário com a voracidade de um cardume de piranha, promovendo assalto geral às bocas da máquina pública.
As frases possuem conotação negativa e não revelam uma simples crítica à escolha da querelante em cargo no BNDES. Elas a ultrapassam e não se limitam ao caráter meramente informativo da imprensa. Aliás, a função da autora sequer foi indicada, restringido-se [sic] ao comentário: “pelo que deu para entender, é alguma coisa com cara de ‘direito internacional’.”
Nesse trecho, temos uma informação relevante (e preocupante). Segundo a Justiça, a imprensa tem “caráter meramente informativo”, ou seja, opiniões não devem ser publicadas na imprensa. Outrossim, frases de “conotação negativa” também devem ser banidas. Adiante:
“Neste contexto, com a utilização das palavras ‘assalto’, ‘atacam’, ‘cardume de piranha’, ‘voracidade’, a matéria induz o leitor à conclusão de que nomeação da querelante, em cargo sequer especificado, ocorreu sem mérito, com a utilização de práticas reprováveis. (grifos nossos)
Registre-se que, em complementação a esse raciocínio, o querelado é jornalista experiente, como declararam as suas testemunhas – Silvio Navarro (fls. 341), Branca Nunes (fls. 342) e Cristyan Costa (fls. 380) – e, naquela condição, se pretendia informar seus leitores, deveria ter utilizado termos objetivos e técnicos, sem mencionar aquelas expressões depreciativas e dissociadas da qualificação profissional da querelante, com extenso currículo e informações acadêmicas de caráter público (fls. 126 a 168).”
Segundo a interpretação, a matéria induz o leitor a concluir que a advogada Carol Proner não teria mérito para ocupar o cargo. O fato é que isso não foi afirmado; diga-se, a propósito, que a crítica do jornalista é tola porque é um direito do governante escolher para os cargos pessoas de seu campo político. Ao mencionar o “extenso currículo” da “querelante”, a decisão judicial aceita a crítica e parece responder a ela. Alguém poderia inferir que, por ter extenso currículo acadêmico, a “querelante” não poderia ser objeto da crítica. Esse argumento seria mais apropriado em um artigo de opinião que respondesse ao publicado no Estadão.
Precisamos saber, objetivamente, qual é o crime da palavra ou qual é a palavra criminosa. Segundo a Justiça, o jornalista deveria ter usado “termos objetivos e técnicos”. Digamos que, caso o jornalismo adote essa lição, abolindo a metáfora, o que parece muito difícil, se não impossível, aí sim, talvez se possa fazer uma lista de palavras ilícitas e, quem sabe, avancemos, no futuro, para a supressão delas.
Por enquanto, a ofensa, sendo o sentimento de alguém, passível de variação segundo a “espessura da casca” da pessoa, não goza de definição objetiva. De resto, a figura da defesa da honra já legitimou até assassinato (só em 2023 essa tese foi definitivamente extinta). Cabe perguntar até que ponto a Justiça deve criminalizar o que se diz num mundo em que os discursos estão em permanente disputa.