Em um artigo publicado no portal Brasil 247, intitulado Justiça Eleitoral e a proteção do regime democrático no caso de violação das leis eleitorais pela divulgação de Laudo falso, o jurista Flávio de Leão Bastos Pereira defende um fortalecimento do controle estatal sobre os partidos políticos e suas candidaturas, ao mesmo tempo em que argumenta pela necessidade de “responsabilização” de partidos que venham a lançar candidatos que sejam “populistas, despreparados, extremistas e claramente contrários ao regime democrático”. Em suas próprias palavras:
“Deve-se, também, debater com mais profundidade o grau de responsabilidade dos partidos políticos, essenciais que são para o regime democrático, quando lançam candidaturas populistas, despreparadas, extremistas e claramente contrárias ao regime democrático, vez que pelo artigo 17 da Constituição Federal de 1988, devem observar o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana, todos violados reiteradamente ao longo da campanha eleitoral de 2024 pelo candidato do PRTB.”
É óbvio, pela leitura do trecho, que a defesa de Pereira visa estabelecer um controle ainda maior do Estado sobre as manifestações políticas e suas organizações partidárias. Na prática, seria o aprofundamento de uma ditadura, onde o Estado reforça o papel de “juiz” das candidaturas, como já faz atualmente por leis como a da Ficha Limpa e o famigerado Inquérito das Fake News, deixando a cargo de uma burocracia decidir quem podem ou não disputar eleições.
Ao fazer tal defesa, o jurista sequer coloca em questionamento acerca de quem seria o “ser iluminado” capaz de definir o que é uma candidatura despreparada ou não. Em um regime verdadeiramente democrático, essa decisão cabe ao povo, que vota nas urnas e escolhe seus representantes.
Por trás dessa argumentação moralista, está o desejo de tornar crime opiniões políticas que divergem do pensamento hegemônico. Em outras palavras, uma candidatura que seja acusada de “extremista” ou “contrária ao regime democrático” – termos que podem ser utilizados de maneira arbitrária para excluir qualquer tipo de oposição – estaria sujeita à cassação e, consequentemente, ao cerceamento do debate político. Essa concepção é abertamente contrária ao que se preconiza como um regime democrático e ao próprio princípio de pluralismo político, uma vez que estabelece limites estritos e persecutórios sobre quais ideias podem ou não ser apresentadas ao público.
O argumento de Pereira, paradoxalmente, surge a pretexto de defender o “pluralismo político” e resguardar o regime democrático. Entretanto, essa posição só é coerente no papel, porque, na realidade, busca restringir a pluralidade de opiniões ao classificar o que seria ou não “aceitável” no debate político. Sob a máscara da “proteção ao regime democrático”, o jurista sugere um Estado com poderes ditatoriais, capaz de censurar e punir partidos políticos por lançarem candidatos que não estejam conforme as diretrizes oficiais do que se entende por “democrático”.
Se adotada, a tese do jurista levaria o País de volta ao ambiente político da Ditadura Militar, onde imperava a lógica da “intolerância com os intolerantes”, conceito que permite que quem está no poder defina e elimine toda e qualquer oposição política. Durante o período do regime militar, o Estado brasileiro utilizava-se dessa justificativa para eliminar opositores e estabelecer um regime totalitário sob o pretexto de manter a “ordem democrática”. A repressão e censura eram práticas comuns e, assim como hoje se busca fazer, todos os que se opunham ao regime eram considerados “extremistas” e “contrários ao regime democrático”, o que justificava o uso da força contra eles.
O jurista vai além ao sugerir que se aumente o grau de responsabilização dos partidos por lançarem candidaturas contrárias ao que ele classifica como “democrático”. Com isso, ele propõe nada menos do que a criminalização de posicionamentos políticos.
A essência dessa defesa está em retirar dos partidos e dos cidadãos o direito de se organizarem em torno de suas ideias e candidatos, delegando essa decisão ao Estado. Dessa forma, o que Pereira defende é um retrocesso autoritário, mascarado pela pretensão de defender os valores democráticos.
É fundamental questionar quem define quais candidaturas são “populistas” ou “extremistas”. Deixar esse poder nas mãos do Estado é, na prática, legitimar a perseguição política a qualquer ideia ou partido que não esteja de acordo com a agenda dominante. A sugestão de Pereira implica em um controle totalitário do pensamento político, em que o Estado se arvora em guardião do que é ou não adequado ao “regime democrático”, e os partidos que ousarem lançar candidatos que não se encaixem no molde serão punidos, algo frontalmente oposto a tudo que se compreende como liberdade política, pelo menos desde fins do século XVIII.
Além disso, ao defender a responsabilização dos partidos políticos, o jurista ataca diretamente a independência das agremiações partidárias e a livre escolha dos eleitores com base em um programa político. A lógica de responsabilizar partidos políticos por suas candidaturas abre espaço para uma série de perseguições políticas, como a cassação de registros partidários, a eliminação de partidos e a exclusão de candidatos que façam críticas contundentes ao regime vigente.
Em uma verdadeira democracia, é natural e até saudável que existam críticas ao regime, uma vez que o dissenso é parte constitutiva do aprimoramento político e social. Proibir a crítica ao regime, como sugere Pereira, é estabelecer um ambiente de repressão onde o Estado, e somente ele, decide o que é verdade, o que é justo e o que pode ou não ser dito. Assim, o pluralismo político defendido por Pereira não passa de um simulacro: em vez de garantir a diversidade de ideias, pretende reprimi-la.
Ao comparar a situação atual com o período da Ditadura Militar, percebe-se que o discurso da defesa da “democracia” serve como cortina de fumaça para a legitimação de práticas antidemocráticas. Assim como no regime militar, onde o Estado justificava suas ações como necessárias para proteger o País, o argumento de hoje é o de proteger o “regime democrático”, mas a essência continua a mesma: o silenciamento e a criminalização dos opositores.
Adotar o que Pereira defende seria caminhar a passos largos para um regime autoritário. A tutela estatal que ele propõe não apenas acabaria com o pluralismo político, mas também imporia um pensamento único, no qual todos os que discordassem do regime seriam punidos e eliminados da esfera pública. Mais do que uma defesa da democracia, o que se vê é a defesa de um recrudescimento das tendências fascistas do regime brasileiro (e mundial), onde o Estado determina o que pode ou não ser dito, quem pode ou não ser candidato e que partidos podem ou não existir.
Se a proposta do jurista fosse aplicada, qualquer crítica ao regime se tornaria uma ofensa passível de punição. É um ataque não apenas aos direitos políticos, mas à própria essência do que significa um regime democrático. Por isso, é necessário rechaçar tais propostas, que ameaçam colocar o Brasil novamente sob a sombra do autoritarismo e da perseguição política.