O artigo Outro processo constitucional fracassado. O que está acontecendo no Chile?, publicado pelo Opinião Socialista, do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e assinado por uma organização chamada MIT-Chile, faz o seguinte balanço do processo constituinte no país andino:
“A derrota da atual proposta constitucional, da direita, evitou um maior retrocesso na área dos direitos sociais (embora os ataques continuem através do Parlamento). Mas resta saber se as massas avançarão em novas articulações para enfrentar o que está por vir. Só o tempo e a luta de classes demonstrarão se esta derrota relativa da direita se transformará numa vitória relativa das massas, causando consequências positivas para a rearticulação do movimento de massas.”
Segundo o artigo, portanto, o referendo realizado no Chile no dia 17 de dezembro teria sido uma “derrota da direita” que, talvez, permita uma “rearticulação do movimento de massas”. Nada poderia ser mais absurdo.
O referendo em questão tinha como objetivo estabelecer o novo texto constitucional do país. A proposta, dessa vez, foi integralmente feita pela direita – ao ponto de ser chamada de “kastituição”, em referência ao líder da extrema direita chilena, José Antonio Kast. Esse fato, em si, já merece muita atenção, pois mostra que, apesar de a proposta não ter sido aprovada, quem está com a iniciativa é a direita.
A votação, por sua vez, não demonstrou uma vantagem tão ampla para os opositores da nova proposta. O texto proposto por Kast teve 45% dos votos, em oposição a 55% contra. Para efeitos de comparação, quando a esquerda, em setembro de 2022, apresentou a sua proposta de Constituição, 62% dos eleitores votaram contra.
O que a extrema direita conseguiu, no referendo no Chile, foi mostrar, na prática, que está com uma vantagem eleitoral perante a esquerda. Sua capacidade de mobilizar o eleitorado em torno de sua proposta se mostrou mais efetiva que a da esquerda.
Mas é preciso considerar que o fato de a direita tomar a iniciativa no regime chileno é muito mais preocupante que em outros países. Isso porque, em primeiro lugar, o governo chileno é “de esquerda” – ainda que seja profundamente pró-imperialista, é um governo que se opôs à “kastituição”. A extrema direita, portanto, não tem “a máquina”, como teve a esquerda durante a votação da primeira proposta constitucional, que contou com o apoio explícito do próprio presidente Gabriel Boric.
Para uma melhor compreensão, comparemos a situação com a do Brasil. Se, durante o governo Lula, a esquerda promover um plebiscito para reestatizar a Eletrobrás e obtiver 60% de apoio, seria algo considerado normal. Trata-se de uma política popular e, caso o governo resolva investir em uma campanha em torno do assunto, certamente teria sucesso, mesmo enfrentando os grandes monopólios da comunicação. Por outro lado, se, durante esse mesmo governo, a extrema direita bolsonarista tomar a iniciativa de pedir o impeachment de Lula, e obtivesse 300, de 342 votos necessários para a abertura do processo, isso mostraria que o governo estaria muito próximo de ser derrubado. Isto é, que o governo estaria na defensiva, e a direita, na ofensiva.
Mas há um aspecto ainda mais importante no caso do Chile. A demonstração de força da extrema direita é uma derrota não apenas de um governo de aparência esquerdista, mas de um poderoso movimento popular que explodiu no ano de 2019. O referendo colocou para a esquerda, em 2023, a tarefa central de se unificar para impedir que a direita ganhasse uma votação; em 2019, a tarefa que estava colocada era a tomada do poder. Não há dúvidas de que se trata de um retrocesso político gigantesco. Dizer que o processo de 2019 se encontra “em aberto” é uma fraude: o processo de 2019 foi derrotado e a votação expressiva da direita em um texto ultra conservador, que previa até acabar com qualquer direito ao aborto, colocou o último prego no caixão.