“O Carrefour é uma empresa que não aprende, que mata negro, que ultraja, que constrange. O que o Vinicius de Paula passou foi crime, [ele] está absolutamente traumatizado – do ponto de vista emocional, psíquico – e, pelo jeito, o Carrefour não implantou nenhum programa significativo, substantivo – e, desta vez, isso não vai ficar impune”. Transcritas de vídeo divulgado no Twitter, essas foram as palavras do advogado Hédio Silva Júnior, representante do cantor Vini, vítima de ato racista perpetrado por uma operadora de caixa da unidade Alphaville do Carrefour.
O crime em questão, que provocou o trauma descrito pelo advogado, foi a recusa da atendente, que operava um dos caixas destinados a público preferencial (gestantes, deficientes e idosos), a passar as compras do cantor Vini, que é um homem negro. Este teria argumentado que, na ausência dos clientes específicos, ela deveria passar as suas compras, mas, mesmo assim, ela se teria recusado a fazê-lo, alegando serem regras da empresa. Ele, por sua vez, teria observado que, em seguida, a mesma operadora passou as compras de uma “mulher branca”, que, supostamente, não atendia a nenhum dos requisitos de preferência. Tal situação, por si só, comprovaria a verdadeira motivação da operadora de caixa: racismo (ou racismo “estrutural”).
Os cartazes distribuídos nos supermercados, de fato, informam que, na ausência dos clientes preferenciais, o caixa está disponível para compras de até dez volumes. Não sabemos se a compra de Vini excedia ou parecia exceder esse limite; também não sabemos se a mulher branca, de fato, não atendia a nenhum dos requisitos. Pelo sim, pelo não, o Carrefour apressou-se em demitir a funcionária racista, que estaria em período de experiência.
É chato dizer, mas pessoas brancas também passam por esse tipo de perrengue no dia a dia e, como estamos no Brasil, não é difícil que uma pessoa mais gentil ou mais simpática consiga um atendimento mais generoso. De resto, até hoje, nunca se viu um operador de caixa exigir comprovante de idade para aferir o direito do cliente de ser atendido, sendo a avaliação do perfil etário um tanto subjetiva – até porque há pessoas de 60 anos que não parecem “idosas”. Enfim, a regra do caixa preferencial está baseada no bom senso e, não havendo distinção de cor de pele, aparentemente as coisas podem resolver-se sem acionar o aparato judicial e sem dar ocasião a indenizações.
O problema está, por óbvio, na distinção racial. Dado o novo consenso em torno do chamado “racismo estrutural”, é legítimo pensar que os brancos estejam em permanente atitude opressiva contra os negros, independentemente da posição que uns e outros ocupem na sociedade. Importa indagar – e é esta a reflexão aqui posta – se o pobre pode oprimir o rico. Vejamos.
Apresentado pela grande imprensa como “marido de Fabiana Claudino, bicampeã olímpica de vôlei”, o cantor Vini aparece no vídeo do Twitter ladeado pela esposa e pelo advogado em sua casa, localizada no “bairro nobre” de Alphaville, reduto de ricos e novos ricos. Os moradores dessa espécie de enclave situado nas cercanias da capital paulista (pertencente em parte ao município de Barueri e em parte ao município de Santana de Parnaíba) tentaram emancipá-lo na década de 1990, mas não conseguiram transformar seus 16,4 km² de área em município.
Estima-se que, nos seus condomínios fechados, morem 35 mil habitantes, que são servidos por cinco hospitais, boa quantidade de clínicas, laboratórios, escolas caras, faculdades, agências bancárias, shoppings e, naturalmente, grandes supermercados, além de contarem com segurança própria. Essa espécie de ilha de ricos encravada em dois municípios pobres conta com uma “população flutuante” de cerca de 200 mil pessoas por dia, composta de visitantes e, sobretudo, de trabalhadores que moram em Barueri ou em Santana de Parnaíba e lá chegam de ônibus. Para chegar de carro, paga-se pedágio.
O cantor Vinicius de Paula, filho do também músico Netinho de Paula (ex-Negritude Jr, ex-apresentador de TV, político que passou por várias legendas e hoje está no Podemos) – cuja biografia é pontuada por fatos controversos –, costuma aparecer nas revistas de celebridades com a família em sua bela residência. Não há dúvida de que, mesmo sendo negro, Vini tem uma situação socioeconômica muito superior à da operadora de caixa, cujo salário fica em torno do mínimo nacional.
O novo caso de racismo do Carrefour, diferentemente daquele que, em 2020, ganhou imensa repercussão devido ao assassinato de um cliente (negro) por um segurança da loja, mostra um negro rico como vítima de um branco pobre (supõe-se que a operadora de caixa seja branca, informação que a imprensa não traz). A empresa imediatamente demitiu a funcionária, agora sujeita a um processo de racismo, cuja pena pode ser a prisão por um período de um a três anos. Convenhamos que tal desfecho seria, provavelmente, mais traumático do que possa estar sendo o fato que Vini enfrentou no supermercado, mas talvez sirva de reparação histórica pela escravidão.
O advogado de Vini afirma que houve crime, mesmo antes de qualquer tipo de investigação ou de oitiva da acusada, e que o Carrefour não vai sair impune. Importa, por óbvio, processar a empresa, que, por sua vez, argumenta ter gastado R$ 115 milhões em bolsas de estudo e projetos para pessoas negras, valor acordado mediante TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) por ocasião do assassinato de Beto Freitas em 2020.
Como se sabe, esse valor é composto de uma proporcionalmente pequena indenização à família do rapaz negro que foi enforcado e asfixiado pelo segurança do Carrefour e de investimento em programas de bolsas de estudos para negros, intermediados pela ONG Educafro e pelo Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo. A vida de uma pessoa pobre tem seu valor calculado segundo certa quantidade de salários mínimos, motivo pelo qual a família ficou com a menor parte do dinheiro. Além dessa indenização, a empresa contratou, à época, a assessoria de ninguém menos que Sílvio Almeida (conhecido autor do livro Racismo Estrutural e atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania), encarregado do “letramento racial” dos funcionários.
Ou bem a luxuosa assessoria do sr. Almeida não mudou absolutamente nada no comportamento do Carrefour, como se afere em outros episódios (em geral ligados à ação truculenta dos seguranças, cuja função é proteger o patrimônio da empresa à custa de humilhar pessoas pobres, que são os potenciais ladrões de um frasco de xampu ou de uma bandeja de carne moída), ou o viés identitário está deslocando a discussão sobre o racismo, de modo a proteger os negros de classes média e alta.
Caso a situação no caixa do supermercado tivesse sido protagonizada por uma pessoa negra humilde, tudo se resolveria ali mesmo, sem grandes traumas. Negro pobre, como Beto Freitas, só comove quando é espancado até a morte. É por essas e por outras que a política identitária, ao suprimir o elemento essencial do racismo, que é a classe social, favorece a burguesia (e os neoburgueses negros).