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Ascânio Rubi

Ascânio Rubi é um trabalhador autodidata, que gosta de ler e de pensar. Os amigos me dizem que sou fisicamente parecido com certo “velho barbudo” de quem tomo emprestada a foto ao lado.

Presídio arco-íris

Cadeia sem truculência “cis”

Bom seria dar dignidade a todas as pessoas encarceradas: condena-se alguém à privação de liberdade, o que já é uma punição muito severa, não à perda da dignidade

“A gente é tratada pelo nome de mulher”. Essa é a frase que intitula um interessante artigo da revista Piauí, no qual se descreve um presídio do estado do Paraná destinado a gays, transexuais e travestis, agrupados na sigla GTT. De acordo com a reportagem, lá os presidiários estão livres do preconceito e da truculência tanto dos agentes penitenciários como dos “detentos masculinos cis e héteros”.

A matéria é só elogios – desde o jardim do edifício até a polidez do diretor, passando pela educação e pelo preparo dos funcionários, que sabem que devem chamar as “meninas” pelo nome feminino de sua escolha. Entre as “regalias” dos GTT estão a possibilidade de trajar roupas femininas, tingir os cabelos e usar maquiagem. Também é seu direito manter os tratamentos hormonais e não se submeter à vexatória revista íntima, pela qual, é bom lembrar, as mulheres “cis”, sejam elas detentas ou visitantes, devem passar.

Que os GTT recebam tratamento digno nos presídios é, de fato, uma boa notícia. Ao lermos a reportagem, que colhe depoimentos positivos de algumas detentas trans, no entanto, temos a impressão de que o sistema carcerário brasileiro é um verdadeiro centro de reeducação e que o único problema é a truculência da “malandragem cis”.

Tomamos a liberdade de reproduzir o trecho que encerra a matéria: “Enquanto voltavam para as respectivas celas, já com a certidão de nascimento retificada com o nome social, as duas presas faziam planos de novo emprego e nova vida – alinhada à identidade de gênero agora reconhecida em seus documentos. ‘Estou mais tranquila e feliz com o meu nome. Acho que vou ter mais respeito. Quando sair, só penso em me levantar. Arrumar um serviço e trabalhar e ter reconhecimento como mulher’, afirmou A.R. ‘Vai mudar muita coisa, porque eu vou poder procurar um emprego com meu nome de mulher. Sei que ainda vai ter muito preconceito, mas já vai ter esse reconhecimento. ‘Vida loka’, nunca mais’”, disse G.A.”.        

A sensação que fica ao término da leitura é que pessoas que saem da prisão recuperam uma vida normal na sociedade, arrumam emprego e vivem felizes para sempre. Infelizmente, essa realidade é mais comum nos filmes norte-americanos de ficção, que fazem a propaganda explícita da suposta eficácia das prisões. De resto, como a questão LGBT está em alta, o leitor da Piauí sai satisfeito de uma leitura edificante como essa e nem mesmo se pergunta o que anda acontecendo no restante dos presídios, com a população carcerária “cis”. O livro Fluxos em cadeia, de Rafael Godoi, pode trazer uma visão mais realista do verdadeiro inferno que são as prisões brasileiras.

Em 2020, no auge do governo Bolsonaro, foi o médico Drauzio Varella quem se encrencou ao mostrar solidariedade à presidiária trans Suzy Oliveira, que, até então, tinha estado oito anos numa prisão masculina sem receber visitas. Em reportagem para o programa Fantástico, da Rede Globo, o médico e escritor, que tem longos anos de atuação em presídios, abraçou Suzy, lamentando sua solidão. Foi o bastante para a comoção irradiar-se pela audiência e transformar-se em grande volume de cartas e presentes a Suzy. Tudo ia muito bem até que o espírito de porco bolsonarista decidiu divulgar nas redes sociais que a “trans” cumpria pena por ter estuprado e matado um menino de nove anos. A coisa ficou ainda pior quando o pai do garoto resolveu processar a Globo e o médico por terem omitido da reportagem o motivo da prisão de Suzy.

Na época, dois anos atrás, a Folha de S. Paulo, ao fazer a cobertura desse caso, publicou matéria segundo a qual, em levantamento divulgado em janeiro daquele ano, a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo mostrou que das 232.979 pessoas presas no estado, 869 se declaravam mulheres ou homens trans e que a maioria das travestis e mulheres trans – 535 das 682 entrevistadas – declararam preferir ficar nas unidades masculinas a ficar nas femininas. A reportagem afirma que a explicação para a preferência seriam os vínculos afetivos que se criam nas unidades prisionais, onde é comum a formação de casais, que solicitam o direito de dividir a mesma cela.

A matéria da Folha adverte: “A questão é polêmica”. Acrescenta o repórter: “Em junho de 2019, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou em caráter liminar que presas transexuais femininas sejam transferidas para presídios femininos. A decisão foi tomada em ação em que a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros) questiona decisões judiciais contraditórias na aplicação de resolução de 2014 sobre o tema. A resolução, da presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação, estabelece que as pessoas transexuais femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas, garantindo tratamento isonômico entre as mulheres trans e as demais mulheres que se encontram em privação de liberdade. A liminar de Barroso, no entanto, não abrange as travestis, sob a alegação de que não há informações que permitam o reconhecimento, com segurança, sobre o tratamento adequado a esse grupo de pessoas”.

Essa questão se assemelha à polêmica dos banheiros. Segundo a decisão do ministro Barroso, do STF, é justo garantir tratamento isonômico entre as mulheres trans e as demais mulheres que se encontram em privação de liberdade. Deduz-se, então, que o mesmo valha para aquelas que vivem em liberdade. Infelizmente, as coisas podem não ser tão simples quanto parecem. Basta lembrar o caso da trans inglesa Karen White, que, antes da transição – portanto, na condição de homem –, havia estuprado duas mulheres e, quando foi presa, se declarou transgênero, sendo direcionada para a ala feminina, onde abusou de quatro detentas.

Tudo indica que essa questão ainda vá dá dar pano para manga, mas, para além de adaptar os presídios às necessidades psicológicas e simbólicas dos GTT, bom seria dar dignidade a todas as pessoas encarceradas – afinal, condena-se alguém à privação de liberdade, o que já é uma punição muito severa, não à perda da dignidade. Diga-se que o presídio gay do Paraná, a cadeia-modelo que tanto empolgou a reportagem da Piauí, continua usando o “boi” no lugar do vaso sanitário.  

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