Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam o investimento do governo de Narendra Modi no setor de defesa e produção de armamentos, e afirmam que a estratégia pode contribuir para fazer do BRICS uma alternativa aos produtores europeus e norte-americanos.
A Índia está colocando em prática um ambicioso plano para ampliar sua presença no mercado de defesa e reduzir sua dependência de outros Estados no setor. A medida faz parte da iniciativa Make in India, lançada pelo governo do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, para fomentar o desenvolvimento da indústria indiana em uma gama de setores.
Nos últimos meses, passos importantes em direção a esse objetivo foram dados. Em dezembro do ano passado, por exemplo, o Ministério da Defesa da Índia aprovou um pacote no valor de US$ 10,1 bilhões (cerca de R$ 54,4 bilhões) para compra de armas para o Exército, Marinha, Força Aérea e Guarda Costeira. Na ocasião, foi anunciado que as Forças Armadas do país receberiam os mais modernos equipamentos militares.
Neste ano, na abertura da exposição Aero India 2023, realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro, na cidade indiana de Bangalore, o primeiro-ministro Narendra Modi assumiu para o seu governo o compromisso de quase quintuplicar as exportações militares do país.
Em entrevista às jornalistas Melina Saad e Thaiana de Oliveira, do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, João Nicolini Gabriel, mestre em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas e doutorando na Universidade de Louvain, explica que quase um século de domínio britânico afetaram de maneira profunda a industrialização da Índia.
“É um país que tem um problema histórico para sua industrialização até por questões da colonização britânica, que impediu por muito tempo a sua industrialização. Desde 1947 [quando conquistou a independência] a Índia luta para tentar se ver como uma potência industrializada”, explica Nicolini.
Atualmente, a Índia é dona da maior força militar do mundo em termos de contingente. Estima-se que há 1,3 milhão de soldados a serviço do país. Porém, Nicolini destaca que esse número não se traduz em superioridade do setor de defesa.
“A Índia tem o maior exército do mundo em número de soldados. Mas o armamento indiano ainda é considerado obsoleto. E esse fator de ter muitos soldados é complicado, porque o governo pensa muito nas pensões. Hoje os países tentam trocar soldados por tecnologias. A Índia tem uma carência em sua indústria de armamentos. Ela é fortemente dependente do exterior, principalmente da Rússia e dos EUA. O desenvolvimento tecnológico no setor de defesa da Índia é muito dependente do que vem de relações bilaterais com essas grandes potências.”
Segundo Nicolini, a Índia tem acordos de cooperação no ramo de inteligência com os EUA, mas a manutenção dos acordos de produção de armamentos feitos com a Rússia é mais vantajosa para o projeto de fomento à industrialização do país, “pois eles preveem a transferência de indústrias para a Índia”. “É isso que mantém o desenvolvimento tecnológico nesse campo”, afirma Nicolini.
Ele acrescenta que a Índia investe no desenvolvimento de submarinos nucleares e que há uma indústria no campo balístico e de mísseis consolidada no país. “Mas quando a gente fala sobre o ‘grosso’ dos armamentos que chegam para o Exército indiano, ele vem do exterior”, diz Nicolini.
O incentivo à indústria de defesa indiana ocorre em pleno momento em que a Índia vive um acirramento de tensão nas relações com a China e com o Paquistão. No caso da China, a tensão se dá na fronteira, por conta de regiões do Himalaia que são reivindicadas por ambos os países. Com relação ao Paquistão, a tensão também se dá por questões fronteiriças, pela reivindicação do território da Caxemira.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Pedro Paulo Rezende, jornalista especializado em defesa e assuntos militares, explica que a experiência desses conflitos contribui para a busca da Índia por desenvolver seu setor de defesa.
“Fornecedores externos já deixaram a Índia em situação delicada nos vários conflitos que o país viveu desde a independência. Produzir seu próprio armamento é a melhor garantia contra um embargo internacional”, afirma Rezende.
Questionado sobre como o BRICS pode auxiliar a Índia a desenvolver seu setor de defesa, Rezende afirma que dois países do grupo, Rússia e Brasil, já vêm colaborando bastante.
“A Rússia já colabora. A maior parte dos equipamentos indianos, principalmente terrestres e aéreos, é produzida no país [Índia] sob licença russa. O conteúdo local nestes equipamentos pode chegar a 100% se a Índia desejar. O Brasil também está disposto a colaborar. A Embraer propôs produzir o cargueiro KC-390 na Índia com alto índice de nacionalização. No passado, a Embraer fabricou aviões de alerta antecipado para a Força Aérea Indiana. Os radares eram de fabricação local.”
Um exemplo da boa parceria entre Rússia e China no campo de defesa foi a declaração dada pelo vice-diretor do Serviço Federal de Cooperação Técnico-Militar da Rússia, Vladimir Drozhzhov, em discurso na Aero India 2023. Na ocasião, Drozhzhov reforçou o desejo de Moscou de estreitar laços com a Índia no setor de defesa e destacou a produção conjunta entre os países de um submarino nacional não nuclear sob o Projeto-75 (I), que tem como base um acordo intergovernamental.
Segundo Rezende, a declaração é um exemplo de que “as relações entre Índia e Rússia navegam com vento em popa”.
“O submarino nuclear indiano foi construído com apoio de tecnologia russa. Outro programa binacional bem-sucedido é o míssil supersônico BrahMos, que pode ser usado em missões antinavio e contra alvos estratégicos localizados em terra.”
Ele destaca que, com relação ao BRICS, o fortalecimento no setor de defesa da Índia poderia servir de alicerce para consolidar o BRICS como “um grupo exportador de material militar, capaz de oferecer uma alternativa aos produtores europeus e norte-americanos”.
Porém, segundo Rezende, avanços posteriores no sentido de fortalecer o poderio militar entre os países do BRICS, para consolidar o grupo como uma ferramenta de contestação à hegemonia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), passariam antes pela solução das questões entre Índia e China.
“Para isso, seria necessária uma solução para o conflito entre a República Popular da China e a Índia. Acredito que Brasil e Rússia poderiam servir de mediadores”, finaliza Rezende.